sábado, 3 de junho de 2023

3 Cozinha goesa: Sarapatel 14/Abr/2008 | Jornal Público

Um Douro para um prato alentejano


Pode haver outros pratos que tendo fugido dos nossos tachos e das nossas mesas ganharam viço noutras paragens, por aí ficando, mas este de que falamos e que dá pelo curioso nome de sarapatel foi sempre bem português. É um dos emblemas da cozinha indo-portuguesa, indispensável na mesa das famílias goesas e obrigatório na ementa dos restaurantes indianos espalhados pelo mundo.

Não se duvida hoje muito quanto ao local de nascimento do sarapatel. Terá sido na Serra de São Mamede, perto de Portalegre, que o prato se definiu e adquiriu personalidade. Já quanto à data, a dificuldade é maior, podendo ser tão antigo quanto o próprio ritual da matança do porco. Na versão original, é preparado, entre outros, com os bofes e o fígado do porco, bem com o seu sangue ainda fresco. De cozedura lenta e apurativa, como manda a tradição e como o próprio lume de chão de outrora exigia, os seus sabores ter-se-ão tornado matriciais e indispensáveis aos locais, especialmente longe da sua terra. Explicação possível mas não satisfatória, que se as migrações de povos e pessoas ao longo dos séculos são fascinantes, as de teor culinário são misteriosas. Certo é que o sarapatel foi dali para a Índia e lá encontrou território fértil para as declinações sápidas e únicas que o constituíram insígnia da cultura goesa. História semelhante tem a receita no nordeste brasileiro, que alegremente a acolheu e modificou de acordo com os seus costumes. Aí, sarapatel e sarrabulho são hoje dados como sinónimos.

Sebastião Fernandes, da Casa de Goa, executa um sarapatel consensual, sem bofes nem sangue. “Hoje em dia, só o sarapatel alentejano continua a ser feito com essas partes”, afirma, explicando que “além do fígado, não entram vísceras na versão indiana do prato”. É sempre feito de véspera, o que faz remontar à receita de Portalegre, de cozedura muito lenta. Não há prato de tacho que, recozendo, não fique mais apurado e profundo. Dá, ainda, a oportunidade de afinar os temperos de acordo com o gosto de cada um. A entremeada é, além do fígado, a parte do porco que Sebastião utiliza na sua receita, o que torna o prato bastante atreito à experiência caseira. Apesar de existirem várias etapas, cozinhar sarapatel em casa é um desafio aceitável e recomendável, com resultados invariavelmente satisfatórios.

A proposta de vinho para acompanhar este prato rico em especiarias e de sabores complexos é de um vinho tinto do Douro. É o “Diálogo” 2005 e foi produzido pela Niepoort e custou num supermercado **** Euros. Foi produzido a partir das castas mais importantes do Douro – Touriga Franca, Touriga Nacional, Tinta Roriz, Tinta Amarela e Tinto Cão – e, vindo de uma das casas mais representativas do Douro, tem um perfil moderno e equilibrado, sem deixar de satisfazer os que gostam da boa tradição duriense: encorpado, denso e complexo. Há que ter o cuidado de o servir a cerca de 15ºC, para que o álcool não se pronuncie mais do que as componentes aromáticas do vinho, essenciais para a correcta exploração da “selva de aromas” do sarapatel. Sebastião aconselha quase sempre vinhos tintos do Douro aos seus clientes, o que está, de certa forma, correcto. Estamos no Norte, onde a acidez fixa dos vinhos é naturalmente elevada em relação ao Sul e a relação de concentração/extracção das uvas produz, normalmente, vinhos carnudos e cheios. São características essenciais para fazer face aos pratos mais apurados da cozinha indiana. Mas há que escolher com critério e cuidado; o Douro é excelente, mas não há excelência em todos os produtores do Douro.



Ingredientes

Para 6 pessoas


1kg de entremeada fresca

0,5kg de fígado de porco limpo

2kg de cebolas

100g de alho

80g de gengibre

Pasta de tamarindo q.b.

15g de pau de canela

100g de colorau encarnado

75g de malaguetas secas

Cominhos q.b.

Pimenta preta moída q.b.

Cravinho q.b.


Preparação


Corta-se o fígado e a entremeada em bocados grandes e levam-se a cozer em água. Antes de estarem completamente cozidas, retiram-se do lume e cortam-se em pequenos cubos, reservando-se. Guarda-se também a água da cozedura. Corta-se as cebolas em pedacinhos aproximadamente do tamanho das carnes, levando-se ao lume a refogar, a que se juntam depois os alhos e o gengibre picados com água fria. Entretanto, coloca-se na misturadora as malaguetas, cominhos, pimenta e cravinho, cobrindo-se com vinagre de vinho. Obtém-se uma pasta que se vai juntar ao refogado, juntamente com o colorau. Ferve tudo cerca de 5 minutos, juntando-se as carnes e a pasta de tamarindo. Cobre-se com a água da cozedura das carnes e deixa-se ferver lentamente, corrigindo-se os temperos de tempos a tempos, até o molho ficar concentrado. Nessa altura, põe-se dentro a canela em pau e apaga-se o lume. Serve-se quente no dia seguinte. 

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