sábado, 3 de junho de 2023

2 Cozinha goesa: Ambotic de cação 9/Abr/2008 | Jornal Público

Picante, ácido e muito saboroso


Foi em pleno Séc. XVI que se deu a grande investida das missões cristãs sobre as multidões não convertidas dos países longínquos recentemente descobertos. Período de grande fulgor para a Igreja, foi também de muita tensão para os povos sobre os quais caiu a obrigação de alinhar no negócio da salvação tal como se fazia na Europa. É que o fulgor espiritual apareceu quase sempre associado ao saque e à conquista territorial gratuita, com tudo o que ela implica, em termos de língua, cultura e costumes. Na Índia que os portugueses foram encontrar, a complexidade era grande. Povos muito estruturados em termos de costumes e religiões, como os concanis, que depois de 5 mil anos de história se fixam em Goa, no Séc. XI, devem ter sido verdadeiros quebra-cabeças para as missões diplomáticas e religiosas que rumaram àquelas paragens.

No entanto, o estrago do desvelo violento dos portugueses não foi demasiado, porque o povo concani sempre lidou de forma exemplar com a diversidade. Quando os indivíduos da raça brâmane são por tradição e obrigação vegetarianos, na intersecção com os concanis comem peixe. Quando a religião hindu estava profundamente enraizada no povo concani, acolheu com carinho a iniciação e os ensinamentos cristãos, criando até pistas missiológicas de que ainda hoje há vestígios vivos. E há descendentes dos concanis muçulmanos nos quatro cantos do mundo. O resultado é a Goa de hoje, em que todas as religiões, línguas e raças convivem de forma totalmente pacífica umas com as outras.

A língua oficial de Goa é o concani e é justamente do dicionário dessa língua próxima do sânscrito que retiramos a palavra “ambotic”. Ela é a aglutinação de duas outras: “ambot”, que quer dizer “ácido”; e “tic”, que quer dizer picante. A grafia internacional é “amotik” e encontra-se em muitas cozinhas do mundo, com o mesmo significado. Em termos culinários, trata-se porventura do mais picante de todos os pratos da cozinha goesa, apesar de isso não se notar quando é feito a preceito. Sebastião Fernandes, do Restaurante da Casa de Goa, é um dos que o faz como deve ser e explica de forma simples o seu ambotic: “se temos 90% de picante, temos de procurar ter 140% de sabor”.

O ambotic mais tradicional e usual é o de cação, mas pode ser feito com qualquer peixe ou marisco. Seja qual for a escolha, a sua cozedura vai sempre ser rápida, para não se perder o sabor e a textura. Além disso, o dito é adicionado apenas na parte final da preparação do prato, pelo que não altera o sabor geral, apenas o complementa. Para esta experiência, escolhemos o cação como proteína principal.


A escolha do vinho recaiu no Covela Rosé 2005 (***** no supermercado El Corte Inglês), um rosé com acidez e grau alcoólico consideráveis ao qual reconhecemos lugar importante na harmonização com pratos picantes e muito condimentados. É um vinho exótico que se pode beber sem qualquer acompanhamento sólido e que se agiganta quando encontra um prato “puxado”. Pela localização das vinhas pertence à categoria de vinho Regional Minho, mas pouco tem a ver com os seus “primos” vinhos verdes; tem mais a ver com os seus vizinhos do Douro. Bem maduro na boca, tem notas especiadas que sugerem cravinho e noz moscada. Se o bebermos a 12ºC, vai mostrar-se no seu melhor.

Quando provado com o ambotic de cação, mostra conseguir fazer frente à avassaladora carga aromática e de sabor do prato. Além de exacerbar as especiarias presentes, é notável o efeito que tem no acídulo tamarindo. Se fizer experiências com outros rosés, vai notar a importância da acidez do vinho, expressão directa da sua proveniência, certamente preferindo os que saem das regiões nortenhas do país.




Ingredientes

(10 pessoas)

2kg de cação limpo

80g de gengibre

60g de alho

60g de malaguetas secas

10g de cravinho

10g de pimenta preta

8g de cominhos

50g de massa de tamarindo

50g de colorau encarnado

1,5kg de cebolas


Preparação

Corta-se o cação em postas de 3cm de espessura. Lava-se bem e salga-se. Depois de secas, regam-se as postas com vinagre com uma passagem rápida e reservam-se. Leva-se à misturadora o gengibre, alho, malaguetas, cravinho e cominhos, cobre-se com vinagre de vinho e bate-se durante alguns minutos. A pasta moída resultante põe-se dentro de um refogado de cebola picada finamente em óleo vegetal, quando esta começa a ficar translúcida. Mexe-se bem em lume médio, acrescentando-se o colorau, tendo depois o cuidado de não permitir que ferva demasiado. É então que se junta o cação em postas, mexendo-se com cuidado para não danificar o peixe. Após levantar fervura, desliga-se e junta-se o tamarindo. Serve-se quente.

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