domingo, 4 de junho de 2023

20 Cozinha caboverdiana: Modje de Manel Antone 13/Ago/2008 | Jornal Público

Modje de Manel Antone


Um vinho de antigamente para o prato da saudade


“Quem mostro’b ess caminho longe? Quem mostro’b ess caminho longe? Ess caminho pa São Tomé. Sodade, sodade, sodade, dess nha terra d’São Nicolau.” (Quem te mostrou esse caminho longe? Quem te mostrou esse caminho longe? Esse caminho pra São Tomé. Saudade, saudade, saudade, dessa minha terra São Nicolau). Começa assim uma das mais conhecidas mornas caboverdianas, colocada na galeria eterna pela grande Cesária Évora. Canta a dor do exílio em São Tomé e evoca as migrações forçadas a que foram sujeitos os povos ilhéus de Cabo Verde, sem mão nos seus destinos face à semi-escravatura que imperava nas roças de cacau. O poema é de Armando Soares, natural da ilha de São Nicolau e também ele instalado na galeria eterna há pouco mais de um ano, deixando a sua terra aos 87 anos. A inspiração veio-lhe das muitas vezes que viu partir conterrâneos seus para São Tomé, temendo que no degredo rapidamente se tornassem esquecidos de todos. A música é particularmente cara à própria Cesária, porque também ela viveu afastada da sua terra natal, Mindelo (São Vicente). Passou um período de quase uma década em Lisboa e curiosamente foi aqui que lançou a sua carreira artística, cantando no Bana – hoje En’Clave – e gravando discos, o primeiro dos quais produzido por Tito Paris, outro músico de excepção. Cesária hoje viaja por todo o mundo, cantando descalça junto da diáspora africana, encantando todos sem excepção. Canta em crioulo, de muito difícil entendimento para quem não está por dentro do dialecto, mas a magia da sua mensagem é universal.

Universal é também a cozinha caboverdiana que se prepara e serve no En’Clave todos os dias. O “Modje d’Manel Antone”, ou Molho de Manuel António, é um prato típico de São Nicolau, a mesma da “Sodade” com que abrimos este texto. Apesar da natureza eminentemente piscatória da actividade e dieta da ilha, este é um prato de resistência, assentando na carne de cabrito ou carneiro capado, processado de forma semelhante aos ensopados portugueses, especialmente alentejanos. A grande diferença está na substituição da batata pelo inhame. Este tubérculo só perde para a mandioca enquanto principal alimento dos países africanos. Tal como a batata, perde o sabor acre depois de cozido, emprestando bom substrato aos pratos de tacho. A designação de “molho” indica bem a natureza caldosa do prato, mais ainda que a cachupa. É feito normalmente de um dia para o outro, ou logo pela manhã, repousando em modo amornado nos bares e restaurantes de cidades ribeirinhas como Ribeira Brava, Tarrafal e Preguiça. A outra diferença em relação a Portugal é a utilização de óleo de palma como gordura de base. Está contudo hoje praticamente esbatida, até no dizer das cozinheiras Ângela e Augusta, do En’Clave, que preferem azeite virgem português para os seus pratos.

O vinho para esta empreitada é um tinto especial, presente no imaginário de muitos enófilos portugueses. É uma homenagem da Adega Cooperativa de Borba a um produto nacional de importância estratégica e é conhecido como “Rótulo de Cortiça”. Falamos do Reserva, que aquela cooperativa publica em anos favoráveis. Está agora nos escaparates a edição de 2003, que nos custou 7,5 Euros num supermercado e que é produzido a partir das castas Trincadeira, Alicante Bouschet, Touriga Nacional e Touriga Franca. Já leva carreira longa a marca, mas este 2003 apresenta-se com um perfil moderno, equilibrado e, servido a 17/18ºC – o contrarrótulo, bem aconselha os 17 -, é um vinho particularmente apto para a mesa, o que é sempre de saudar. A “massa” presente no prato – batata, mandioca, inhame e abóbora – adocica um pouco o “modje”, pedindo um vinho fresco, com boa relação taninos/acidez. O picante e a carne pedem corpo e oferecemos-lhe este Borba, que agradeceram, criando uma harmonização feliz.


Ingredientes

(6 pessoas)


1kg de carne de borrego limpa, cortada em pedaços

2 cebolas médias cortadas em rodelas finas

2 dentes de alho picadinhos

4 colheres de sopa de azeite virgem

6 bananas verdes

750g de mandioca

750g de inhame

500g de abóbora

3 malaguetas

2 tomates bem maduros

1 ramo de coentros picados

3 litros de água

Sal e pimenta, q.b.


Preparação


Tempera-se a carne com sal, alho e malagueta, deixando repousar duas horas. Escaldam-se os tomates, tirando-se a pele e as sementes e reservam-se. Levam-se as rodelas finas de cebola ao azeite quente num tacho fundo, mexendo sempre até alourar. Junta-se a carne ainda com o lume vivo e, após mudar de cor, junta-se o tomate. Mexe-se tudo bem e cobre-se com os três litros de água. Levantando de novo fervura, põem-se no tacho as bananas, a mandioca, o inhame e a abóbora, tudo cortado em pedaços. Baixa-se o lume a deixa-se ferver sem tampa, até ficar com consistência espessa, mantendo a natureza caldosa. No final, junta-se os coentros e corrige-se de sal, pimenta e malagueta a gosto. Serve-se bem quente em prato de sopa.

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