domingo, 27 de outubro de 2019

Eu e a comida

Mesa, comida e o melhor da vida

Comer bem é saber o que se come e o contrário nem sequer é comer mal, é não comer sequer. Falar sobre a relação com a comida é puxar um certo fio de memórias quase todas de descoberta e aprendizagem e a mesa é o espaço natural para esse exercício. Relação por isso muito feliz e cheia de futuro.

Apesar de mais três décadas de gastrópode vagaroso, provando quase tudo o que se me ia apresentando por onde fui passando, a minha relação com a comida é ainda marcada pela minha ignorância sobre quase tudo. Vivo talvez por isso em constante perplexidade perante o inteiramente novo. Se tivesse de resumir diria mesmo que a minha relação com a comida, a mesa e tudo o que com ela se relaciona é tripartida, entre perplexidade, descoberta e estudo. É natural que neste preciso momento em que escrevo seja esse o meu sentimento, pois estou em plena exploração do maravilhoso livro Peixes de Portugal da ictiologista Maria José Costa (Edições Afrontamento, 2018), do qual tento estudar um peixe por dia e no qual praticamente tudo me era desconhecido até dar com ele. Apesar da minha compleição e da cubicagem generosa com que a idade adulta me agraciou, gosto mesmo mais de aprender do que comer. Hoje viajo sem me fazer rogado só para provar um peixe que está na desova e vai ser processado por um mago da grelha. Nestas investidas, ainda é hoje é muito mais o que desconheço do que o que sei, e na partilha à mesa há magia ainda hoje. Nos ombros de gigantes, vê-se melhor o mundo. Os concursos da televisão, obviamente impostos por audiências, podiam ser ponto de partida se no momento sacramental em que finalmente se desliga o aparelho se fosse procurar saber mais, em vez de se ir para cama, cansado e estupidificado. E há concursos de tudo hoje em dia a acontecer, outro aspecto que tira os cozinheiros do trilho, que pena passarem mais tempo nos estúdios e palcos do que na biblioteca. Estamos melhor do que nunca, mas podíamos estar a avançar mais ligeiros e seguros. Aprendi a estar à mesa em festa com o meu mestre David Lopes Ramos - hoje já no Olimpo a partilhar o melhor com os melhores - em vez de estar circunspecto e desconfiado. Disse-me ele muitas vezes que o português adora sentar-se em boa companhia e sente-se feliz por partilhar. Hoje sei o quanto estar de bem com a vida ajuda a provar melhor o que se come e bebe, está mais que provado cientificamente que há receptores de sabor e aroma que fecham quando o sistema nervoso se sobrepõe e obriga o cérebro a julgar da pior maneira. Caso do serviço nos restaurantes, por exemplo, que o crítico deve desvalorizar ou pelo menos não dar demasiada importância mas que às vezes apetece varrer com o lança-chamas. É muito mais importante perceber o que está a comer, e é a isso que chamo comer bem. Em jeito de rábula pronta a disparar, é a minha resposta favorita à vezeira pergunta sobre onde se come bem. Eu como bem em toda a parte, porque sei o que estou a comer. Nas cozinhas populares como nas mais vanguardistas, o imperativo principal é perceber o que se está a comer. Na dúvida, pergunta-se, que a resposta sempre há-de esclarecer. Perdi, infelizmente a capacidade de julgar de acordo com o meu gosto e o meu prazer. É deformação profissional, sei bem, mas a cozinha, o chef e os donos dos restaurantes não cozinham para me agradar; eu é que tenho de entender o que fazem. Por isso transferi o núcleo do prazer para o factor surpresa e para a novidade. Muitos amigos meus ficam desapontados quando me recuso a dizer qual é o melhor polvo de Portugal, mas a verdade é que eu próprio não sei. Já por outro lado, consigo recomendar pessoas, cozinheiros e empresários, seguindo o fio simples de raciocínio produto, origem e processamento, conseguimos colocar lado a lado a cozinha mais humilde e a brigada mais sofisticada.
No final dos anos oitenta estar junto a Marc Veyrat e provar alguns dos seus pratos foi uma enorme iluminação. Autodidacta como tantos chefs Michelin são, aprendi como sofisticação e equilíbrio vão lado a lado. Estar vinte anos depois na mesa de Santi Santamaria - outro que já está na felicidade da companhia dos eternos - e provar o toucinho com caviar fez-me aproximar para sempre dessa glória que é o bom toucinho e estudar marinadas e salmouras até à exaustão. Dois génios absolutos e centrais, que explicaram sempre e com a maior simplicidade tudo o que faziam. As coxas de rã de tomatada do alentejaníssimo António Nobre foram a confirmação do elevado nível técnico e de conceito por parte de um português que faz questão de ser simples em tudo o que faz. Um ensopado de borrego em casa de amigos, feito sem véus nem disfarces, honrado a cozinha de pastor no seu melhor e sentir-lhe a complexidade e as nuances. Cozinhar com Víctor Sobral em sua casa e ver que é no coração e nas mãos que está a verdadeira ciência culinária e se decide o gosto português, que não admite sucedâneos. Conversar longamente com gigantes como Maria de Lourdes Modesto e Graça Castelo Lopes - algumas dessas conversas aconteceram mesmo na cozinha, em funções - foi como desenrolar rolos de conhecimento antigo e materializar conhecimento ao vivo. O bacalhau à Conde da Guarda de Vítor Claro forçou-me a subir à mais exótica biblioteca para entender a genial abordagem de que tratava. O cozinheiro não se perdeu, felizmente, apesar de hoje estar totalmente dedicado à produção dos seus vinhos muito especiais. O robalo com laranja e funcho de Miguel Castro e Silva ficou incrustado na minha memória e permanece como uma das mais felizes realizações em torno desse peixe. A outra é talvez o robalo com algas do Mariana, em Afife; outro exemplo de centenas de quilómetros que faço sem pejo para comer. O leitão assado à Bairrada de Vidal Agostinho, declinação cuidada que passa pela criação dos próprios leitões, de cruzamento de raças e criação ao ar livre e de que a memória mais forte é a do convívio com aquela família de notáveis e veneráveis. Os xeréns e atrevimentos de Noélia Jerónimo, em Cabanas de Tavira, a genial cozinheira que gosta de ser feliz a fazer os outros felizes, a que é preciso juntar as experiências bem sucedidas de bivalves com acompanhamentos surpreendentes, levam-me - em vão - a tentar fazer em casa.
Digo que não registo o serviço mas claro que não é inteiramente verdade. Os cozinheiros de alma têm a memória no coração, e praticam a sedução como ninguém. Há cerca de uma década, encontrei em Girona o grande chef Alain Passard, do Arpège, em Paris. Tinha acabado de fazer uma demonstração culinária extraordinária e no final veio a correr atrás de mim, já a meio de um charuto de celebração. Eu achei que ele se tinha enganado e estava a confundir-me com alguém. Mas não. Verdade que eu tinha estado no restaurante dele a jantar, cerca de dez anos antes. E decidi pô-lo à prova, quando me disse que há muito tempo que não me via no Arpège, a que respondi com uma verdade insofismável, só lá estive uma única vez. Eu sei, disse ele, e continuou, foi em Agosto de 2002 e ficou muito chateado por eu substituir o lavagante por salpicão de Paris. Tive obviamente de me render à precisão de memória de Passard, que depois descreveu com todo o detalhe tudo o que tinha acontecido naquele jantar, Conto este episódio muitas vezes, porque apesar do alto a que já chegámos,é cedo ainda para descansar. A expectativa de alguém que entra num restaurante é, pelo menos ser bem tratado. E se for muito bem tratado, a experiência é inesquecível. Por muito que eu goste da comida e o recorte técnico das criações culinárias, o fogo que se me acende dentro por perceber que estou a ser tratado nas palminhas é indescritível e fideliza-me para sempre. Sai-se com a promessa a si próprio de voltar. E volta-se. Comer é muito mais do que levar comida à boca e ver se está salgada.

domingo, 13 de outubro de 2019

Vinho voz e música

Notas soltas para harmonização de vinhos e música.

Há pontes evidentes entre música e vinho e todas elas decorrem da característica intrinsecamente vibratória da música. Os aspectos harmónicos e inarmónicos da vibração ocorrem também dentro do vinho. Qualquer líquido ou sólido a transportam de forma imanente e única. A própria molécula elementar tem uma vibração latente entre os seus átomos que definem tanto o seu estado energético como o comportamento numa reacção química. Por outro lado, o estímulo da vibração induz nos líquidos alterações que são objecto de estudo e caracterização. O vinho é particularmente sensível ao estímulo vibratório. Uma cave de vinhos na qual queremos estagiar e manter os nossos vinhos por muitos e bons anos deve, por isso mesmo, ser imune à vibração e sobretudo não ter, ela própria, um ambiente demasiado vibratório. Os armários climatizados para vinhos que hoje se vendem e aos quais confiamos as nossas mais preciosas garrafas, garantem não só temperatura e humidade constantes, mas também ausência de vibração. Isto faz com que os vinhos evoluam tranquilamente, de acordo com os seus componentes e perfil, em vez de por estímulos exteriores.
Vinho é complexidade. Aromas, sabores, sensações, entrada de boca, meio de boca, fim de boca, retronasais, bouquet, são inúmeras as portas de entrada de um bom vinho. Podem, por isso, ser eles próprios estados de alma. E como sabemos que é verdade que um mesmo vinho há dias que nos apetece, contra outros em que não nos apetece nada. Um pouco como as relações entre as pessoas, que conhecem melhores e piores dias consoante os ânimos e os astros, apesar de as pessoas serem as mesmas (serão?...)
Eu tenho particular dificuldade em não pensar em que vinho me evoca a voz de alguém que acabo de conhecer. Reconheço no timbre, intensidade, aresta, rugosidade e flutuações da voz características que são quase directamente transponíveis, sem mais, para o ambiente conjunto de taninos e acidez de um vinho. Uma voz esganiçada é um vinho com taninos muito verdes sobre os quais cai uma acidez desequilibrada. Já uma voz de peito e doce, como é a voz de uma mãe, evoca taninos muito finos, com uma acidez escondida, quase imperceptível. A voz do pai, essa é normalmente “feita” de taninos redondos, maduros, suportando uma acidez maior, pelo ambiente também ele maior.
Os estudos musicais para que os meus pais me conduziram na infância e na juventude foram causa de dor e sofrimento, ligados ao sentimento geral de “não ser capaz” que só não experimentou quem nunca se dedicou a um instrumento. Passados alguns anos deram contudo numa fonte de grande prazer, partilhado com outros. A minha relação com o piano é bonita e cabe nela praticamente todo o meu mundo. Toco mal, mas tenho um gozo tremendo a tocar, e aproveito para pôr a conversa em dia com pessoas que não tenho mais ao pé de mim. Os cerca de 10 anos que dediquei ao órgão de tubos de S. Domingos, por motivos imprevistos e que ainda hoje não sei explicar, que não seja pela insistência de um grande amigo dominicano, Frei José João, ensinaram-me ainda mais um mundo todo. A função dos metais, do sopro e dos grandes bordões graves do que é talvez o instrumento musical mais poderoso de todos.
Mas mais importante não é tocar, é saber ouvir. Aprender a ouvir, percebendo o que está a acontecer à nossa volta. A música aprende-se. O vinho é exactamente a mesma coisa, também se aprende a apreciar. Música e vinho são ambos assunto de aperfeiçoamento para uma vida inteira. E não há melhor forma de o fazer do que praticando.

(Exercício feito a convite da Bacalhôa Vinhos no dia 11 de Outubro de 2012)


I Aliança Bairrada Bruto 2007
1. Canadian Brass - Tuba Tiger Rag
2. Dukes of Dixieland - Bourbon Street Parade
3. The Dirty Dozen Brass Brand - Carvan

II Casal Mendes Rosé
4. Nitin Sawney - Say Hello
5. Bliss - Song for Olabi

III Casal Mendes Verde
6. Carlos Paredes - Verdes Anos
7. Gotan Project - Queremos Paz

IV Quinta do Carmo Branco 2011
8. Dionne Warwick - I'll never fall in love again
9. Emmy Curl - Elefante
10. Nitin Sawney - Immigrant

V Quinta do Carmo tinto 2008
11. Nitin Sawney - Tides
12. Miles Davis - A kind of blue

VI Moscatel de Setúbal 2000
13. Terez Montcalm - Shattered
14. Ana Carolina & Seu Jorge - É isso aí
15. João Gilberto - Hobalala

A chave

I. Espumante: FESTA, Metais, Marcha, Fanfarra;
II. Verde Rosé: PROXIMIDADE, Lounge, Whispering, Vocalizos;
III. Verde Branco: SAUDADE, Guitarra portuguesa, acordeão, batida em aceleração;
IV. Branco alentejano: SEDUÇÃO, voz de taninos firmes, frescura e recorte, projectiva;
V. Tinto alentejano: CONFORTO, A voz do pai, cordas quentes, piano, violino, violoncelo, sopros;
VI. Moscatel de Setúbal: INTENSIDADE, Força, doçura, persistência.

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

O mais português dos bolos

(pastel de nata antes de ir ao forno a 380-420ºC)

As receitas fundadoras do pastel de nata concentram-se no creme que preenche a pequenina taça de massa, pouco ou nada sendo dito acerca desta última. O mesmo acontece com o açúcar, a cozedura e o acabamento. Preciosismo, dirão alguns e com razão. É que independentemente dos detalhes técnicos não há português que não reconheça o pastel de nata como seu. E ninguém duvida de que é 100% português.

O génio nacional que ao longo dos tempos produziu, sem inventores nem autores identificáveis, o prodigioso receituário a que nos habituámos a chamar cozinha tradicional portuguesa fixou autênticas glórias. Fialho de Almeida escreveu a propósito do prato nacional que era um produto do génio colectivo, “ninguém o inventou e inventaram-no todos”. O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao pastel de nata e à farta e vasta pastelaria lavrada nos livros que andaram outrora dentro e fora dos conventos. É de resto graças às oficiantes religiosas não residentes - só as mais abastadas podiam permanecer como internas - que os manuais se foram consolidando, arregimentando homens e mulheres da vida secular. O conhecimento, segredos, receitas e técnicas cresceram em paralelo nos mundos secular e religioso, com o mesmo fim de criar receita para o funcionamento sustentável das casas.
Quando por decreto são extintas as ordens, expropriados todos os conventos, expulsos e perseguidos os religiosos, os muitos pequenos negócios entretanto criados subsistiram, ainda que sob rigorosa vigilância do estado. Aconteceu em 1834, com os efeitos devastadores que se conhecem. Em 1837 é criada a Real Fábrica dos Pastéis de Belém, perto do mosteiro dos Jerónimos, com loja adjacente à operação de refinação de açúcar. Servia-se como hoje se serve, o bolo juntamente com açúcar refinado e canela, para temperar a gosto. O negócio do açúcar estava em expansão e o recém-criado bolo era instrumento valioso de promoção. Quando se interrogar acerca da disponibilização de um pacotinho de açúcar, outro de canela, juntamente com a caixa de pastéis de Belém, a razão é essa. A receita, essa, já viajava alegremente pelas casas fora. E pese embora o facto da autoria ser impossível de fixar, há fortes indícios de que a saga do pastel de nata tenha sido fundada no séc. XVI pela infanta Dona Maria, neta de D. Manuel I, filha de D. Duarte e dada em casamento ao terceiro duque de Parma, Piacenza e Guastalla. Está nesse livro a receita dos pastéis de leite. O copo do pastel pode bem ter já sido feito de massa folhada originalmente, o grande mestre francês Paul Bocuse deixou claro que a criação aconteceu no séc. XIII. Sabemos contudo que o trabalho da massa folhada, ainda que tosco e sem intenção específica de servir de base de pastelaria, remonta aos tempos luminosos do Egipto e da Grécia. Uma vez mais, o fenómeno popular extingue a toda e qualquer ideia de fixação da autoria; é de todos, como tudo o que é fundador. Os pastéis de Belém escudaram-se sempre no conceito oposto, o do segredo. Ainda hoje existe a sala do segredo, longe dos olhares de todos, e a receita é conhecida apenas de duas pessoas. A comunicação é a mesma de sempre e diz “cuidado com as imitações”, mas em rigor um pastel de Belém não é um pastel de nata, mas um pastel… de Belém. Na cozedura é irrepreensível, nunca a menos de 380ºC, o copo fica crocante, o recheio quase líquido, que é uma custarda simples, também conhecida como creme inglês. É esse o postulado do bolo a que chamamos pastel de nata, descartando toda e qualquer hipótese de se fazer em casa, nos fornos domésticos, menos ainda as soluções ultracongeladas, supostamente regeneradas pelo calor incompetente dos fornos de convexão que grassam pelos cafés e pastelarias sem fabrico próprio. Infelizmente, é esse o pastel de nata mais frequente pelo mundo fora, mas felizmente é também um grande e eficaz embaixador da portugalidade. A diáspora portuguesa não o dispensa, e há belíssimos exemplos de pastéis de nata, processados a preceito e segundo as receitas mais importantes. Quais são? Uma de duas, de bases diferentes. Uma data dos anos 30 e é do eterno chef João Ribeiro, base de leite, farinha e calda de açúcar; a outra é quase a dual dessa e foi fixada nos anos 40 pelo grande Olleboma, António Maria Oliveira Bello e é candidamente baseada em natas.
O que é um bom pastel de nata, afinal? Basicamente, aquele que perdura. A pastelaria é hoje um luxo, mas nasce da arte da confeitaria, ou seja, transformação pelo calor do açúcar presente nos frutos, criando conservas naturalmente doces e ao mesmo tempo preservando o sabor original de cada fruta. Nasceu antes da extracção do próprio açúcar. Os romanos adoçavam a boca com frutos secos que mantinham nas suas despensas. Ainda estamos num período de relativa euforia do açúcar - até nos medicamentos há açúcar, para facilitar a toma - e já sabemos que temos de reduzir o consumo drasticamente. Mas até nisso o pastel de nata é esplêndido, com cerca de 90 calorias apenas por bolo, é o menos doce de toda a pastelaria. Como seleccionar o seu pastel de nata preferido? Escolha seis pastelarias e compre seis pastéis em cada uma. Guarde na despensa e vá provando em dias sucessivos. Seis pastéis de nata por dia, parece muito mas é um exercício muito bom para a família. Vai dar-se conta de como evolui em casa. Os melhores serão aqueles que mantém a estrutura, cremosidade e sabor. Um pastel é uma conserva e o pastel de nata é de todos o mais português. Boas experiências!