sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Touros, morte e mito

O caso é recente e impressionante, da corrida de 30 de Abril de 2011 na praça de touros da Maestranza, em Sevilha, e teve dois protagonistas, José Maria Manzanares e o touro Arrojado. Touro e toureiro numa dança perfeita como eu nunca tinha visto. Em Espanha mata-se o touro no final de cada faena, é a regra vigente e aceite e se não existisse nunca teria sentido o que aconteceu naquela tarde na Maestranza. Manzanares indultou o touro, há décadas que tal não acontecia em Sevilha. O que significa indultar o touro, na tauromaquia? Reconhecer-lhe grandeza de igual para igual, e para o toureiro perceber nobreza no animal. É muito raro tal acontecer e naquela lide foi de tal forma que provocou comoção em todos os que enchiam a que é uma das maiores catedrais de toureio do mundo. Manzanares ia deitando o olhar ao director da corrida, interpelando-o para que lhe concedesse o privilégio de deixar viver o touro. De repente lenços brancos começam a agitar-se, no público todos choravam, emocionados e eu próprio também, o momento era de elevação misteriosa, uma ligação a que eu nunca tinha assistido apesar de saber que existia. Inesquecível, e ainda está disponível no youtube para quem quiser ver. Por tudo o que possa vir a acontecer às touradas, esse espectáculo e felizmente muitos outros deixarão memória inefável na arte tauromáquica. Por cá a evolução da chamada tourada à portuguesa conduziu um pouco à recíproca, reduzindo bastante quando não mesmo suprimindo o toureio a pé, pelos chamados matadores. O toureio a cavalo e a pega do touro por forcados são fórmulas exclusivamente portuguesas, a que nos habituámos e que ao contrário do que se pensa têm conquistado mais adeptos e novos públicos. João Moura ainda não tinha 18 anos e já toureava a cavalo com passos geniais em que fintava o touro e desafiava as leis da física, como se de uma dança se tratasse, à maneira de Manzanares no episódio citado. A sua marca é indelével e mudou a forma de tourear a cavalo. Aspecto curioso é que os touros sejam conhecidos em Portugal apenas pela ganadaria donde provêm, enquanto em Espanha cada touro tem um nome que todos fixam e referem. Isso faz com que a dupla cavaleiro e cavalo se sobreponha à da dupla toureiro e touro, o que pode justificar o distância a que estamos dos espanhóis na forma de viver a festa brava. Desde 1840 que deixámos de matar o touro na arena, bastante antes de se proibir formal e definitivamente os touros de morte, em 1928. Temos um episódio de contornos míticos que está lavrado em fado e dá conta da morte do conde dos Arcos, filho do Marquês de Marialva, na praça de Salvaterra de Magos, colhido por um touro. O nobre terá descido à arena, caminhado para o touro acabara de lhe matar o filho e, estático se deixou abater sem qualquer reacção. Correrá para sempre na história que o rei D. José ficou tão impressionado com o episódio que proibiu, a partir desse dia os touros de morte nas touradas reais. Os factos indicam contudo que morreu num acidente no campo, mas a história permanece viva no imaginário tauromáquico. A questão dos touros de morte está ligada a uma tradição que nos tempos modernos do discernimento e do respeito inalienável ficou vazia no conteúdo. No entanto, ainda estamos em tempo de transição, a as dúvida e o impasse têm marcado mais a forma de olhar para o fenómeno do que a certeza absoluta. Isso acontece desde que em 1836 D. Maria II promulgou a lei de Passos Manuel que decretava a proibição definitiva da morte dos touros na arena. Nem um ano durou, pela tristeza que provocou em todos, vindo a ser revogada. A desobediência lusa à bula papal de Pio V, de 1567, em defesa da vida dos que enfrentavam os touros, foi total, até D. Sebastião, grande aficionado da festa, em vésperas de partir para África matou touros em Xabregas com lança e rojão. E sabemos o que aconteceu quando se tentou proibir os touros de morte em Barrancos, conduzindo a situações de excepção, aí e em Monsaraz, com a justificação de se tratar de uma manifestação cultural.
A expressão pegar o touro pelos cornos tem raiz tauromáquica e é sinónimo de bravura que utilizamos diariamente para distinguir pessoas actos corajosos. O Al Andaluz, território e cultura que outrora incluía grande parte da península ibérica e um pouco do sul de França, bebe muita da tradição taurina de antigamente. O flamenco faz parte das artes cénicas principais em Espanha, evanescentes dessa tradição de há muitos séculos e faz parte das celebrações familiares na Andaluzia. A evocação da festa brava é evidente em quase todos os movimentos e cantares, com a sensualidade ao rubro. Os maravilhosos quadros de Júlio Pomar que compõem a série tourada nunca poderão ser considerados atentados à moral e aos direitos dos animais. Há que não cair no logro de fazer tábua rasa de tudo o que no passado advogámos e agora condenamos, assim como há que parar de defender o indefensável. Mas se sabemos mais e temos mais consciência do valor da vida vegetal e animal, temos muito para mudar, para lá de proibir o que nos provoca repulsa ou enoja. Talvez venha mesmo a mexer com a forma como nos alimentamos. Não estamos a conseguir erradicar a fome do mundo sem recurso a organismos geneticamente modificados. Alimentamos os peixes em viveiros com rações que conduzem ao crescimento rápido e pouco saudável e sempre que os agitadores dos ditos viveiros avariam a oxigenação da água não se dá e morrem milhões de peixes, após longas agonias. Praticamos pesca desportiva, tiramos fotografias com exemplares com que ganhámos medalhas, que depois emolduramos e penduramos em casa. O peixe pescado à linha é muito valorizado na praça e no restaurante sem que o aspecto da tortura animal e morte lenta nos impressione. O marisco vivo não fala nem grita quando o colocamos na panela ou grelha, mas está vivo e mexe quando o fazemos. Os tempos que medeiam a morte e a rigidez cadavérica de um peixe são fundamentais para a qualidade do sushi mas a dor e o sofrimento do animal não são tidos em conta. Não podemos dar connosco a defender o indefensável, mas também não devemos ter dois pesos e duas medidas nos julgamentos. Pode ser que a prazo o mundo se torne vegan, é uma tese que corre e faz sentido. Estamos lentamente a mudar a forma como nos alimentamos. E definitivamente, também a forma como nos divertimos. É profundamente saneador da existência humana acabar com o sacrifício animal por diversão. Quando no início do séc. XX o imperador do Japão percebeu que tinha de ocidentalizar costumes e hábitos para conseguir estabelecer pontes comerciais e de contacto com o mundo ocidental, e anunciou que tinha começado a comer carne no palácio imperial houve uma revolta popular grande. O budismo proíbe o derramamento de sangue de inocentes, o que inclui os animais. O Gujarate, na Índia, é vegetariano e desenvolveu, tal como os japoneses, grande requinte e sofisticação de sabores. A Tailândia á uma língua fina e muito extensa de território que absorveu praticamente todas as influências que por lá passaram. A ideia de proteína principal e acompanhamento não existe na cozinha peruana, onde a diversidade é o aspecto mais importante. É um lugar-comum dizer que temos de saber donde vimos para perceber para onde vamos e não é a olhar para trás que vamos conseguir andar melhor. O tempo é de discernimento e atitude. Gostava de conseguir ter sempre alegrias como a que José Maria Manzanares me proporcionou naquele dia, mas sei que isso não vai acontecer porque vamos deixar de ter touradas. Tenho pena, mas talvez ainda bem.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Estrelas 2019

Alargámos o caminho das estrelas

Somos incomparáveis em praticamente tudo e o mais alto palco gastronómico do mundo não podia ser excepção. Um caminho calcorreado primeiro tacteando no escuro trouxe-nos até ao chão seguro que começamos a pisar. É proibido lamentar as estrelas que ainda não temos, os nossos pioneiros estão a tornar tudo mais fácil para todos. Há que festejar.

É impossível não ficar dominado pela emoção quando vejo os nossos bravos iluminados pela luz da ribalta, ao lado dos gigantes ibéricos. De repente, a luta diária e a adversidade enfrentada de tantas formas dão lugar ao sentimento de festa que é, mesmo para os repetentes, um dia zero, em que tudo se faz novo. Para a gala Michelin que acaba de acontecer, é de registar que foram convocados todos os chefs portugueses detentores de estrelas, aspecto inédito nas galas do guia vermelho. Foi a primeira vez que aconteceu em Portugal, a Michelin quis fazer a festa com todos os nossos bravos. A elencagem mais complexa e fria do mundo da alta cozinha demonstrou que o sentimento suplanta a razão e fez uma grande festa nacional, a que todos os nossos acorreram com alegria. Ser Michelin é diferente de não ser, há uma opção que custa tomar aos empresários de restauração pelo esforço financeiro que implica mas que é também uma proposta de excelência. A Michelin é o único sistema de classificação que não se baseia no julgamento crítico, antes aponta caminhos e direcções e é isso mesmo que liga todos os chefs entre si, aqueles que ali estavam ontem e todos os que figuram nos guias Michelin pelo mundo fora. Um sistema universal que se diria utópico mas que de facto existe e está forte, arregimentando mais empresários para a plêiade.
Ver Óscar Geadas subir ao palco para vestir a jaleca de uma estrela Michelin pelo G Pousada que governa juntamente com o seu irmão António fez-me deter até no aplauso, com os olhos rasos de lágrimas. De repente, em Bragança, numa pousada que estava moribunda, mantendo o negócio do venerável restaurante Geadas, impondo novas regras e assumindo excelência em todos os detalhes e a toda a prova, acontece a estrela Michelin. Em Trás-os-Montes profundo, nos rigores da maior interioridade, aconteceu. E por muito preparado que estivesse, o chef Óscar Geadas abismou ao olhar para a plateia, o palco passou a ser, a partir de agora, também dele, notável a todos os títulos. Mensagem clara e directa para todos os que se sentem menosprezados pela distância de Lisboa ou Porto, ao trabalho! A segunda mensagem clara aconteceu com a outorga da estrela ao chef Pedro Almeida, do Midori, restaurante oriental do hotel Penha Longa, em Sintra. É um génio que consegue criar emoção numa cozinha étnica que sabemos ser a que mais preza e eleva o peixe e o mar na forma mais directa. Uma refeição no Midori é um regalo com contornos de antologia, produto irrepreensível e a arte da lâmina levada ao extremo, com inúmeros acrescentos. A partir de agora, estão na mira os brilhantes chefs das orientalidades, mãos à obra. O chef António Loureiro, em Guimarães, oferece no seu A Cozinha uma experiência fundadora, mesmo para quem está habituado à grande mesa. Era à partida a estrela inevitável, pela consistência do seu trabalho e pela força do conceito que em tudo se sente. Sustentabilidade é apenas uma das pontas visíveis, duas outras são igualmente notáveis, desperdício zero e fusão de sabores. Tudo ali preparado à nossa frente, sem véus nem disfarces. Mensagem clara e directa para os que lutam obedientes às suas vozes interiores e vivem animados - muitas vezes em grande solidão - pelo quanto acreditam no rumo que a consciência e o intelecto lhes ditam. Finalmente, mensagem clara e directa foi a segunda estrela para o Alma, do chef Henrique Sá-Pessoa. O elevado nível atingido no Alma, com um rendimento brilhante de sabores, integração de influências e todo um conjunto de factores explicam a passagem a duas estrelas. O chef Sá-Pessoa está há um par de anos a trabalhar no pleno do sabor, sofisticação e arte culinária. Passa a fazer companhia ao Vila Joya, Ocean, Belcanto, Yeatman e Il Gallo d’Oro, lugares onde vamos e sentimos a diferença. A lógica Michelin faz sentido. Claro que esperávamos mais, claro que gostávamos de ver os restaurantes que acompanhamos e prezamos chegar-se também à ribalta. Certo é que todos os que estavam na gala estavam felizes, a força Michelin é um elemento ligante importante. Podemos confiar. E trabalhar muito.

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

O Porto da alta restauração.

A complexa e pouco povoada área de fine dining do Porto deu lugar a uma efervescência talvez maior de talentos e projectos, a ponto de sentirmos a Invicta como capital nacional do gosto. Palpamos o terreno, com a ousadia que se espera e recomenda.

Num mundo perfeito, e numa leitura simplista dos acontecimentos dos dois últimos anos nos restaurantes do Grande Porto, a festa Michelin também acontece a Norte. O cenário está em constante remodelação, mas chegado o momento da eleição, há que fazer uma somatório rápido das experiências, ousadias e novidades sentidas. Nos candidatos à primeira estrela, começa a ser gritante o caso do Ferrugem, em Vila Nova de Famalicão, o chef Renato Cunha está com o seu restaurante há anos na categoria Bib Gourmand, não se entende que como não lhe tenha sido concedido entrar no universo superior. Vasco Coelho Santos, do Euskalduna Studio destaca-se pelo rigor culinário e afinação de sabores, numa sala onde tudo é feito à vista, sem véus, num ritmo certo e com ingredientes de grande nível, passando mesmo por lavradores e hortelões a trabalhar em exclusivo para a casa. João Cura, no Almeja, criou em menos de um ano um ambiente gastronómico inovador, com propostas de talante gigante, não seria a primeira vez que um restaurante tão recente ganhasse a primeira estrela, pelo que evocamos a excepção para produzir a regra. Parece inevitável a estrela para o Cozinha por António Loureiro, em Guimarães, matriz conceptual muito forte assente nos pilares da sustentabilidade, produto autêntico e lógica de aproveitamento total, vertidos em pratos deliciosos que nos alegram a alma. Outra primeira iria para o Paparico, de Sérgio Cambas, cujo entendimento com o chef Jonathan Seiller é total, criando um dipolo forte entre tradição e modernidade, do qual os grandes beneficiados somos nós. É mais que chegado o tempo do Palco, restaurante do Hotel Teatro, com o brilhante Arnaldo Azevedo a encenar diariamente um espectáculo culinário meticulosa e obsessivamente coreografado, por isso lhe daríamos uma estrela segura. Óscar Geadas fez com o seu irmão o impensável ao pegar no lugar único que é a Pousada de Bragança e transformá-la num espaço de retiro gastronómico de grande gabarito. E é o momento para reverenciar o chef Camilo Jaña, do Cafeína, pela inquietude e desinstalação, enquanto congrega uma clientela exigente à sua volta. A estrela na verdade, para estes mestres não representa motivação adicional nem é objectivo de vida; de certa forma a vida já lhas deu. Entramos no patamar superior da refeição perfeita quando falamos de Rui Paula, mente brilhante e grande empresário, fazer uma refeição na Casa de Chá da Boa Nova, em Leça da Palmeira, é toda uma viagem de que regressamos sempre com outros ângulos e perspectivas sobre o que a mesa pode ser. Do perfeccionista Vítor Matos, Do Vinvvm, o pensamento mais complexo pela obsessão com o detalhe, e sabemos que sempre sairão propostas surpreendentes e refeições incomparáveis. Pedro Lemos é na culinária nacional o atleta de alta competição que em cada prova se excede para lá do previsto e Tiago Bonito, erudito inconfesso que está aos fogões do Largo do Paço, em Amarante, já mostrou que continua com muito para dar e com a atitude de quem está no posto certo, maduro e pronto. Ricardo Costa, no Yeatman, é um dos poucos chefs habilitados a chegar ao topo da galáxia Michelin e trabalha num regime notável de concentração e energia, há-de ser um dos primeiros a lá chegar. Tem uma estrutura de grande nível hoteleiro com ele, o que para o objectivo supremo é determinante. O Norte merece e faz por merecer.