segunda-feira, 22 de julho de 2019

Conhece o queijo Serra da Estrela?

Portugal é único nos seus queijos de leite de ovelha cru e o DOP Serra da Estrela é porventura o porta-estandarte. Apesar da preferência pelos portugueses, no entanto, há muito caminho ainda para andar até ao esclarecimento definitivo.

Indo por partes e direitos ao assunto, temos muito que aprender, e dentro do que falta saber talvez o mais grave seja o serviço do queijo Serra da Estrela. Todos nos habituámos ao esquema que lentamente se tornou num standard, e que é o de abrir o queijo por cima como se de uma caixa se tratasse, e depois servi-lo à colher. Coisa menos acertada deve ser difícil de encontrar, a par da designação pejorativa e evocativa de coisa artificial que é a da "casca". O queijo é todo ele queijo, não há casca nem miolo, pelo que era da maior relevância terminar de vez com a forma "à colher" para o servir. O modo mais adequado à natureza e processamento do queijo Serra da Estrela é servi-lo em fatias "de lés a lés", sempre. Só assim podemos ver o aspecto queijo quanto a olhos - que devem ser poucos ou inexistentes -, côr - que deve ser ligeiramente amarelada mas não demasiado - e consistência - que tem de ser a de uma pasta ligada e homogénea. Importante, portanto, o modo de servir o Serra da Estrela.
A dificuldade imediatamente a seguir que surge é como comprar. Há que dizer que não é fundamental que a prova para se comprar um bom queijo Serra da Estrela. Quando pegamos num queijo fechado e o sentimos nas palmas das mãos, a reacção ao toque dos dedos já diz muito sobre o perfil do queijo. Deve dar a impressão de uma massa bem ligada, com boa elasticidade, a recuperar prontamente o ponto inicial. O cheiro também é bom indicador, e há que dizer, neste aspecto específico, que quanto mais inodoro melhor. Pode ir contra o que muitos professam, mas no queijo e peixe, quer-se menos cheiro e mais glória, porque a festa é na boca quando os comemos. É ainda importante que exteriormente não apresente fissuras nem rachas, ambas sinais de eventuais erros de manipulação ou estágio apressado. Os seus contornos devem ainda ser abaulados, sem arestas pronunciadas; isso só deve acontecer com o queijo já a caminho de velho.
A prova pode também parecer um quebra-cabeças para o não-iniciado, mas não há razão para tal. A forma mais expedita é pegar num queijo novo e com uma sonda retirar um pouco da pasta do queijo, colocá-la na ponta do indicador e colocá-la na língua. Depois devemos encostar esse bocado de massa ao céu da boca e avaliar as sensações transmitidas. Nenhum dos três componentes principais do queijo - sal, lácteo e cardo - deve singularizar-se no palato, os melhores queijos são os que apresentam o maior equilíbrio. Já agora e à laia de provocação, apesar do preconceito indicar que é o vinho tinto ou mesmo o vinho do Porto Vintage a melhor companhia para um bom queijo Serra da Estrela, não deixe de fazer a experiência com um bom vinho branco do Dão da casta Encruzado. Boas experiências!

Contactos para provar e comprar bom queijo Serra da Estrela
(preços dentro da gama 20-30 Eur/kg)

Quinta da Lagoa
Tel. 232 671 173 / 966 796 448

São Gião
Tel. 963 958 386

Queijaria Dos Lobos
Tel. 919 970 846

Batatas, vamos a elas!

Começou a sua carreira europeia como planta ornamental e só no final do Séc. XVIII adquiriu pergaminhos de ingrediente indispensável. Quem passa sem a batata?

Auguste Antoine Parmentier oficiava como farmacêutico do exército francês quando foi preso pelas tropas prussianas, em meados do Séc. XVIII. À maneira de castigo, foi alimentado exclusivamente de batata, até então utilizada apenas como planta ornamental. O espírito científico de Parmentier e o facto de ter sobrevivido com boa saúde ao longo cativeiro fizeram com que logo que se viu em liberdade fosse a correr até ao seu rei, dando conta da descoberta. Em 1785, tem lugar um dos mais importantes banquetes da história da alimentação, oferecido por Parmentier aos reis de França, no qual todos os pratos tinham batata, em diversas preparações, formas e cozeduras. Originalmente proveniente do Perú, o tubérculo começava uma carreira internacional de grande fulgor, a ponto de hoje ser uma presença indiscutível nas mesas de todo o mundo. As terras andinas continuam a liderar, com cerca de 4 mil variedades conhecidas, enquanto que pelo Velho Continente algumas foram elevadas ao estatuto supremo, de ingrediente de alta cozinha. A “ratte”, de bitola pequena mas muito rica em sabor a frutos secos e polpa ligada, amanteigada, tem sido alvo da aplicação afincada dos maiores chefs da actualidade. O tri-estrelado chef Joel Robuchon desenvolveu um puré muito especial, com batata ratte, manteiga e leite, que é talvez a maior parangona da história da batata. Em Portugal, são vários os lugares berço de bons e saborosos exemplares. A da Póvoa dispensa apresentações e é porventura a nossa melhor. Mas em cada horta, em cada recanto regado diariamente e ajeitado de forma competente pode gerar boa batata. Do valor nutritivo ninguém hoje duvida, sendo até integrada por vários médicos especialistas em nutrição. Frita, assada, em puré, na variante “rosti” ou no inefável “gratin dauphinois”, a batata é irresistível. Imperativo adoptar.

domingo, 14 de julho de 2019

Portugueses, ao barrocal já!

O barrocal algarvio comporta praticamente todo o ADN da mesa portuguesa e é exemplar na forma como continua a exprimir e viver a mais perfeita fusão de mar e terra. Acontece na cataplana, no fogo vivo e sobretudo no coração das pessoas. Fatia de território a descobrir.

Parece um border collie o cão do barrocal algarvio e foi a custo que se lhe recuperou prestígio e existência, há menos de três anos. Inteiramente justo. Tem na massa dos genes o instinto para o coelho bravo, o mais saltitão e imprevisível dos animais que cabem na categoria da chamada caça menor e era outrora, 50 ou 60 anos atrás, elemento fundamental no quotidiano dos locais. Esta é uma das muitas perplexidades que nos esperam quando nos detemos na faixa de terra que medeia mar e serra e dá pelo nome de barrocal. A revitalização da raça de que falamos quer dizer a um tempo que o território por que quase não damos quando migramos para as apetecíveis praias a sul teve em tempos intensas fauna e flora e ainda que a criação e a proximidade criaram um ecossistema completo; o barrocal algarvio tem identidade e personalidade.
Parece efabulação romântica mas é certo que o longilíneo enclave entre o mar e a serra ainda hoje tem pulsar próprio e mantém muito do que nele é primordial. Existe uma óbvia ligação ao Norte de África. Os estufados longos, os figos, o azeite, as infusões, os aromáticos e o pão são estacas sobre as quais o tempo construiu a ponte indestrutível entre as duas margens que ainda hoje testemunhamos. São eflúvios mediterrâneos, seguramente, mas devemos conter o primarismo na abordagem, porque se a terra mais a sul de Portugal é irmã da mais a norte de África, o mar algarvio é definitivamente atlântico. Sente-se nas bacias frias, rocha fecunda e marés bem batidas do barlavento, secção marítima entre Sagres e Loulé, justamente onde termina também o barrocal. Temos assim um rectângulo bem definido de território que bordeja o mar e obriga à leitura norte-sul se o quisermos entender bem. As hiperabundantes espécies bivalves que na maré vazia se desenterram com as mãos em concha escavadora estão desde sempre presentes na mesa do barrocal, assim como muito do que vinha nas redes - sardinhas, carapaus e anchovas - e se apanhava de noite ao largo - lulas, chocos e polvos. Tudo o passar do tempo fez fundir e casar e é por isso que a cozinha do barrocal liga naturalmente mar e terra; foi sempre assim. No celebrado prato que é a carne de porco à alentejana, pedaços do dito macerados em massa de pimentão, ligados com alho, amêijoas e coentros, temos um dos mais propagados exemplos. Curiosamente - ou não - o Alentejo chama-lhe simplesmente carne de porco com amêijoas, o que faz todo o sentido, pois foi prato que migrou do barrocal para latitudes superiores, tanto pelo sabor como pela míngua instalada, a que se fez frente com o reforço proteico de baixo custo, essa sim, marca bem alentejana. Aprimorou-se e criou nova sede no Alentejo, mas a raiz é lá em baixo, junto ao mar.
Há que juntar a este cenário a muito provável presença dos cátaros, expulsos do sudoeste francês e da igreja católica por heresia - ousaram apontar o dedo ao papa por corrupção e entrega aos prazeres da carne - e entraram em Portugal pelo Baixo Alentejo. Fixaram-se em dispersão em comunidades monofamiliares, como era seu costume, vivendo do que à sua volta existia e medrava. Adeptos da pureza, estetas da sustentabilidade, seguramente muitos se fixaram perto do prodigioso mar que visitaram, o que significa que também a eles devemos a fusão mar-terra com que hoje convivemos de forma natural. Ouvi num dia feliz o chef catalão Ferran Adriá dizer, logo após anunciar o encerramento do mítico restaurante El Bulli, que tinha saudades dos grelhados de seu pai e das cataplanas de sua mãe. Se há alfaia de cozinha típica do barrocal é o famoso bivalve de cobre, pelos vistos mais viajado do que imaginamos, merece atenção especial pela dupla convexão que concentra o calor e permite finalizar pratos inefáveis. à incerta certidão de nascimento há talvez a acrescentar mais uma proveniência.
O javali ou porco selvagem era e é ainda omnipresente, as batidas de então faziam sentido pela questão numérica e pela necessidade de os manter longe das capoeiras, já bastavam as raposas e os lobos. De sabor pronunciado, proteína forte, presta-se tanto a cozeduras longas como à grelha mais vigorosa. Claro que foi adoptado pelo barrocal e marca presença sobretudo em pratos de tacho.

Cataplanas e outras alegrias

Em muito poucos lugares do barrocal encontramos a diversidade e primor culinário que o Restaurante Ribalta, em Algoz, concelho de Silves oferece. Angelina Ponte instalou há vinte anos um templo no meio do território intermédio - passe o pleonasmo - no casario que viu nascer o seu marido, Francisco Ponte. Tem na filha Elsa a companheira que faz falta em toda a cozinha, tudo antecipando e enriquecendo. Pedimos à dupla-maravilha que fizesse para nós três pratos ilustrativos das artes da fusão mar e terra sobre que discorremos e aqui estão eles.

Cataplana de javali com camarão e batata-doce
Há todo um jogo preliminar de preparação dos ingredientes, antes da assemblagem final do prato. O javali tem uma cozedura muito mais longa do que o camarão, que deve entrar cru no conjunto, e a batata-doce, que não pode cozer demais. Quando finalmente se monta a cataplana, cada ingrediente vai no ponto óptimo para a criação do sabor único que de seguida se prova. Não tem descrição o caldo que misteriosamente se gera dentro do recipiente, pede pão ao lado no momento de servir.

Galinha algarvia com amêijoas e pão frito
O sabor forte e pronunciado dos bivalves crus imediatamente entra no maravilhoso fundo que se gerou na cozedura da galinha, exigente e longa, como se espera. Animal já com uma certa idade, alimentada ao ar livre, a carne é fibrosa e tarda a aceitar a destruição, mas quando acontece temos praticamente tudo feito. As amêijoas abrem no caldo e em poucos minutos acontece o prodígio do barrocal. Fusão perfeita.

Porco com berbigão e xerém
Bivalve vezeiro na tradição arrozeira e enquanto petisco autónomo, o berbigão é um dos mais saborosos mariscos nacionais e é também amigo do povo, preço bastante inferior ao da amêijoa, por exemplo. Está aqui uma das declinações da carne de de que hoje o país inteiro gosta, referido como à alentejana sempre que o bivalve é a amêijoa. O rendimento de sabor é difícil de descrever, e não há quem não goste, começando nas crianças e terminando nos fervorosos fãs mais maduros. O xerém é aqui feito com uma textura muito fina, quase puré, e beneficia do caldo misto de carne e marisco.



Restaurante Ribalta
Ribeira Alta
8365-091Algoz
Tel. 282 575 714 / 963 692 569 / 916 123 835
12:30-15:00; 19:30-22:00
Preço médio: 20 Eur
Fecha: 3f

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Frescos, salinos e minerais, a nova vaga

É notável o que está a acontecer na enologia nacional, com a pronta e crescente adaptação às alterações climáticas e a demanda de perfis e estilos mais ligeiros e frescos. Com a mineralidade à cabeça, está aí a festa da frescura, grandes vinhos que vão do rosé ao Porto Vintage.

Humildade, estudo e experimentação têm vindo a alterar radicalmente o cenário vinícola em Portugal, e os principais beneficiários são os enófilos amantes da diferença. O jargão utilizado para descrever um vinho inclui hoje obrigatoriamente os termos salino e mineral, em parte pela crescente concentração nas vinhas velhas, em parte também pela ousadia dos produtores, substituindo tabus por conhecimento. A enologia é uma profissão fundamental de base científica, a que se deve juntar o enveredar por caminhos não usados. A Poças, produtor 100% nacional com mais de cem anos de vinhos do Porto e Douro, acaba de colocar no mercado vinhos de grande talante, à maneira de sonda, e a reacção não podia ser melhor. Selecção cuidada de videiras, utilização de técnicas diferentes e obtenção de vinhos originais, um de curtimenta - orange wine -, outro de ânfora. São ambos brilhantes e sobretudo constituem caminho. Idêntica moção animou a Adegamãe a produzir vinhos diferentes do usual, incluindo um estreme de Touriga Franca que mostra uma face diferente da casta em vinhas próximas do mar e latitudes mais baixas. O mesmo mar que tem permitido ao Casal de Sta. Maria a criação de vinhos exemplares, como é o caso da segunda edição do rosé Mar de Rosas, trabalho genial de interpretação de casta e terroir. A incrível adaptação da casta Alicante Bouschet aos solos de Campo Maior e que revela grafite intensa entre os descritores de prova, num vinho de celebração e homenagem a Manuel Nabeiro, fundador da Delta e da Adega Mayor. E depois o grupo mais excitante de sempre de vinhos do Porto que os vintages de 2017 representam, fruto da mesma inquietude e busca da perfeição. Boas provas!

17 - Poças Fora da Série Orange Douro branco 2018 (12,3%) | Manoel Poças Junior - 22,5 euros
Vinho assente em técnicas seculares, cruzadas graças ao talento de Jorge Pintão, chefe de enologia da casa. Sauda-se em particular a moderação alcoólica, e o prazer de beber. Frescura e salinidade fazem dele companheiro excelente à mesa.

17,5 - Poças Fora da Série Ânfora Douro branco 2018 (13,3%) | Manoel Poças Junior - 35 euros
As ânforas onde estagiou este vinho francamente original não tiveram qualquer tratamento prévio, o vinho estagiou nesse ambiente poroso e natural, com o resultado final de grande frescura que se encontra na exploração. Atitude ousada, a de utilizar ânforas no Douro, mas por outro lado… por que não?

18,5 - Adegamãe Terroir Lisboa branco 2014 (12%) | Adegamãe - 39 euros
Vinho notável, sem dourados nem outros atractivos que nos façam estender a mão e levar, mas um verdadeiro tesouro para levar para casa e provar de dois em dois anos. Grande arte enológica por detrás deste néctar, a cumprir o desígnio mais grave e redentor, que é o do futuro.

17,5 - Adegamãe Touriga Franca Lisboa tinto 2016 (13,5%) | Adegamãe - 9 euros
Encontramos esta casta normalmente no Douro e associada à Touriga Nacional, mas este vinho faz-nos pensar sobre a que pode bem ser a casta menos olhada dentre todas as nacionais. Fresco e equilibrado, está aqui um bom demonstrador disso mesmo, notas de alcaçuz e salinas, termina longo e especiado.

18 - Mar de Rosas Lisboa rosé 2018 (13%) | Casal de Sta. Maria - 23 euros
Era fácil perceber que a revolução iniciada na edição de 2017 teria sequela ainda de maior gabarito, mas com esta fica clara a intenção do produtor de fazer um rosé de nível gigante, assim como o compromisso do enólogo Jorge Rosa Santos de se transcender em tudo o que faz das uvas mais atlânticas de todas.

18 - Entretantos Alentejo tinto 2013 (15,5%) | Adega Mayor - 100 euros
É uma homenagem a Manuel Azinhais Nabeiro, fundador do império Delta, que com a neta Rita criou e acarinho o projecto vínico da Adega Mayor. É um 100% Alicante Bouschet, pleno de notas minerais de grafite e é também a um tempo demonstrador da adequação da casta ao terroir e marca de potencial futuro.

19 - Niepoort Vintage Porto 2017 (19,7%) | Niepoort - 90 euros
Harmonia e equilíbrio são as palavras de ordem neste vintage único em que tudo foi posto em causa pelo criador genial de vinhos que é Dirk Niepoort, para chegar a um novo paradigma de vinho do Porto. E como conseguiu! É o mais tânico de todos os vintages Niepoort, mas ao mesmo tempo também o mais mineral e de taninos mais finos de sempre.

19 - Fonseca Vintage Porto 2017 (20%) | The Fladgate Partnership - 100 euros
É um colosso este vintage, pela potência e ao mesmo tempo elegância que mostra, com um grupo de amargos notável, apresentado sob um véu de enorme elegância. Poderoso e fresco, deixa memória que apetece revisitar logo após o primeiro contacto.

19,5 - Quinta da Roêda Sérikos Vintage Porto 2017 (20%) | The Fladgate Partnership - 250 euros
Sérikos quer dizer seda e fixa a memória da plantação de amoreiras para criação de bicho da seda, ao mesmo tempo que evoca a pós-filoxera que pôs o Douro em movimento até aos dias de hoje. As vinhas velhas são o grande património do Douro e o cuidado posto na produção deste vintage são a afirmação da maior dupla enólogo/viticólogo de sempre, corporizada por David Fonseca Guimaraens e António Magalhães.

20 - Taylor’s Vargellas Vinha Velha Vintage Porto 2017 (20%) | The Fladgate Partnership - 280 euros
Um vintage que representa só por si uma proposta de redefinição de vinho do Porto, perfeito no equilíbrio, na força e sobretudo na intenção com que foi feito. Dentro de cem anos, estará ainda e evoluir em garrafa e dele os vindouros dirão que este sim era o mais puro e perfeito. Não há vinho acima do melhor vinho do Porto.