domingo, 4 de junho de 2023

6 Cozinha argentina: Parrillada 6/Mai/2008 | Jornal Público

Parrillada


A Paz do Dão para o rubro das brasas


Anima os dias festivos e abrilhanta com nota faustosa os momentos de celebração entre os argentinos. Falamos do “asado”, a que em português chamamos churrasco e assenta numa das melhores ofertas de bovino do mundo. O “El Último Tango”, o restaurante lisboeta com quem visitamos este mês a cozinha argentina, utiliza exclusivamente carne da raça Angus criada nas pampas, que importa fresca embalada em vácuo. Miguel Soares é um apaixonado confesso da carne grelhada, paixão superada apenas pelo tango argentino, de cuja academia em Buenos Aires faz parte desde 1991. A sala do restaurante, de resto, dispensa introduções, tendo ao fundo as brasas e grelhas onde são processadas de forma competente as diversas carnes, exibindo as paredes inúmeras memórias e alegorias do tango da Argentina. Fotografias diversas de autores e intérpretes testemunham a “afición” do proprietário. Fixamo-nos num poema manuscrito curiosamente intitulado “Lusitango” e que vimos a perceber ser da autoria de Horácio Ferrer, o mesmo que escreveu grande parte das letras do espólio de Astor Piazzolla. Esteve ali mais do que uma vez e ali deixou um tango da sua lavra, especificamente dedicado a Miguel Soares e a Lisboa. A música, essa, não pára e mantém-nos colocados em tempo e espaço na atmosfera intemporal e eterna do tango.

O argentino médio come cerca de meio quilo de carne grelhada por sessão, o que é uma dose mais que generosa de proteínas. Disfarça a empreitada a diversidade de cortes que é levada à grelha, bem como o estendimento no tempo e, se as brasas tiverem sido preparadas a preceito, corre tudo ligeirinho, suculento e natural. Para melhor se controlar o processo – que nada tem de fácil -, há que considerar três tipos de transmissão de calor quando as carnes repousam nas grelhas sobre as brasas. Em primeiro lugar, está o calor irradiado pelas brasas e que é o mais forte de todos; depois, a convecção de ar quente que no processo envolve a carne; e finalmente, a condução de calor da superfície para o interior das peças.

Com a cozedura – que se dá com a transmissão continuada de calor do exterior para o interior da carne –, há uma libertação da água contida nas fibras para os espaços intersticiais. O resultado ideal consegue-se quando se grelha até ao ponto ideal, que é aquele em os sucos se mantém “dentro” da carne. Conhece-se este ponto como “mal passada”, proscrito pelo preconceito de alguns mas sem dúvida aquele que faz justiça a uma boa peça. Começa, já se vê, pelo trabalho de preparação das brasas, continua na entrada de cada corte no timing certo e termina com a adaptação dos tempos de cozedura à vivacidade das brasas ou à distância a que a grelha foi colocada. Um “parrillero” competente como Miguel Soares já tem cravados no seu relógio biológico os tempos certos, pelo que a sua parrillada aparece no prato como um mostruário de cortes diferentes, processados no seu ponto óptimo de cozedura. Trabalho facilitado, portanto, para a escolha do vinho.

Foi eleito o Vinha Paz tinto 2006, um vinho de uma das mais consistentes casas do Dão no tocante à qualidade. Produzido a partir das castas Touriga Nacional, Tinta Roriz, Alfrocheiro e Jaen, mostra grande equilíbrio na prova, complementado por frescura. Estamos numa região onde a acidez fixa é naturalmente elevada e é justamente daí que extraímos a nossa pouco ortodoxa escolha. Os argentinos elegeram os vinhos da casta Malbec para os seus grelhados de carne, talvez pelo seu carácter consensual. O nosso paladar busca mais os equilíbrios do que a força e mostrou a escolha ser acertada principalmente com os cortes mais gordos, como é caso da “tira ancha”. Como o nome indica, trata-se de uma tira cortada através das costelas, ao longo da peça inteira e é um dos mais demorados grelhados da parrillada. Servido a 16ºC, deixou boa memória este Vinha Paz.



Para conseguir bons grelhados de carne


O discurso técnico de uma boa sessão de grelhados assenta sobretudo na preservação dos sucos da carne dentro de cada peça. Nunca é demais perder algum tempo a conseguir chegar a brasas com uma distribuição uniforme de calor e com persistência no tempo; nem demasiado vivas, nem quase mortas. E nunca, ou quase nunca, grelhar carne em chama directa; esta vai provocar um sobreaquecimento exacerbado do exterior, obrigando a que a carne desidrate muito depressa, tornando-se pouco interessante e desprovida de sabor. Melhor do que tomar nota é ir falar com Miguel Soares, mas alguns pontos são consensuais:

- Salgar antes de grelhar apenas as peças gordas; fazê-lo nas partes magras provocará um efeito semelhante ao da chama, desidratando as peças.

- Ordenar as peças por ordem decrescente de gordura.

- Selar todas as peças antes de começar a grelhar, o que consiste em passar um pouco de cada lado, como forma de conter os sucos dentro da carne.

- Não passar demasiado a carne. Mesmo o ponto “rosé” já denuncia desidratação, o que é tanto mais de lamentar quando mais se investiu na compra.

- Nunca utilizar carne congelada. É fundamental que a carne tenha uma boa e hidratada estrutura fibrosa, o que normalmente se perde quando se congela. 

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