segunda-feira, 23 de setembro de 2019

A recomendável vida de taberna

Deitar farinha de fava ou três claras de ovo para dentro de uma bilha de barro com vinho tinto, agitar bem e durante muito tempo, deixar descansar e no dia seguinte o vinho estará branco. Lê-se no Livro de Cozinha de Apício - um breviário do gosto imperial -, no capítulo do cozinheiro aplicado, apontamento em que explica como preparar vinho branco a partir tinto, obra fundamental para todos percebermos de onde vimos. Publicado em 2015 pela Relógio d’Água, tradução de Inês de Ornellas e Castro, a quem devemos também os excepcionais comentários e adaptação de receitas que constam da obra. O compêndio em si é notável, tanto para perceber a ciência e a segurança acerca do gosto humano e do prazer de bem beber e comer, como para alimentar fortemente a evidência de que, volvidos dois mil anos, estamos quase no ponto em que estávamos. No tempo do império, não se bebia vinho tinto, antes um branco que ou se fazia a partir de uvas brancas, ou era produzido em bica aberta para dar mosto branco que depois quando muito se envelhecia em ânforas e ganhava matiz nacarado. São excessivas e sem fundamento as cenas dos filmes evocativos da época, em particular as festas romanas em que se bebe, derrama e esbanja vinho tinto a rodos. Era branco e mesmo assim diluído em proporções que podia, ir até 75%; a bebida consumida teria cerca de 6 graus de álcool apenas, o que é ainda mais abaixo do que o vinho leve de Ourém, cuja origem de resto não é acidental.
Os romanos souberam beber da beleza e harmonia das propostas gregas, sistematizando-as e desenvolvendo até à exaustão. Arquéstrato, autor de um extenso e exaustivo poema culinário no séc.IV a.C. expõe um receituário inclui graças como peixe grelhado no borralho, pratos de caça e sobremesas que hoje executamos nas nossas casas. Apício encontra já um trabalho colossal operado nas vinhas. Cerca de 200 tipos de vinho diferentes, produzidos a partir de 80 castas traduzem uma variedade difícil de conceber. A taberna - palavra que vem de tabernáculo, ou templo improvisado, móvel - era o espaço público onde se bebia e à medida que se foi dando a impregnação de um certo helenismo nos hábitos e práticas de consumo surge a mesa. Até lá, o almoço comia-se de pé, o jantar reclinado e em jeito vagaroso. No tempo da ocupação romana, Lisboa vê nascer as suas tabernas e não é preciso imaginação muito fértil para ver como sem portas se ia de umas para outras livremente, enquanto se convivia e conversava. As recriações feitas ilustram bem a imponência monumental greco-romana e a natureza ribeirinha de Lisboa contribuía fortemente para o perfil cosmopolita de então. Apetece entrar numa taberna com Apício e perguntar-lhe o que acha do que hoje vê. Para nossa perplexidade, gosta do nosso traçadinho, nem o acha muito distante do que se bebia no seu tempo, enriquecido até pelo gás que contém e que o aligeira ainda mais. Estamos à mesa e diz-nos que é a um tempo um objecto de partilha do que se come - cum edere, ou alimentar-se com - e comer - origem da palavra comércio e que pressupõe a partilha da mesa com alguém. Ficamos a saber que os mostos de uva tinham diversas utilidades culinárias e que a glicerina contida no vinho ganhava expressão enquanto espessante e por isso se reduzia até um terço para obter compotas e sobremesas, apontando-nos o nosso arrobe beirão e a uvada lisboeta como primórdios. Não estamos tão perdidos como pensamos. Lemos no já citado livro de Inês Ornellas e Castro que para cozinhar se usava mosto cozido - defritum - vinho doce natural - carenum - para cozinhar, ambos reduzidos a um ou dois terços, consoante a consistência final que se desejava. Também havia vinho aromatizado com mel, vinho de passas e outros de menor importância mas igualmente válidos, de figos, tâmaras e romãs. O tanino do vinho era, mesmo sem se lhe conhecer o nome, bem-vindo na digestão e funcionava como catalisador. Não tardou que na taberna se passasse também a comer, com a experiência composta de vinho e comida a servir para restaurar as forças e a energia. O restaurante foi o modelo que se seguiu e no tempo da grande partida de portugueses nas naus e caravelas já Lisboa era lugar de muitas moradas restauradoras, bem como de mesas de diversas sofisticações. Apício faz ponto de ordem à mesa e diz que o vinho é um dos grandes prazeres da mesa. para de seguida lamentar nunca nos ter aqui chegado o famoso vinho de Sorrento, cujas ânforas de meio litro valiam comparativamente mais do que vale hoje o vinho mais caro de Bordéus. Reagimos mal hoje a quem mistura gasosa num copo de vinho bom mas sem querer está de certa forma a cumprir-se a história. A escolha é sempre nossa, afinal e as bebidas “on the rocks” que têm álcool de partida bem mais forte que o vinho são prática corrente, sem complexos. O tinto de verano dos nossos vizinhos espanhóis não é senão um traçadinho bem posto, servido fresco e com um ligeiro gasoso carbónico, à maneira da imperial. O próprio gosto da cerveja que hoje está ao rubro com as excelentes bebidas artesanais que grassam entre nós, são elas próprias já passagens de testemunho com perspectiva histórica evidente. Para os gregos antigos, aliás, toda a bebida fermentada tinha o nome de cerveja, tivesse lúpulo, malte ou uva como ponto de partida. A destilação incrementava a pureza, a diluição o consumo. O matizado de bebidas que a civilização produziu vive-se na tasca mais rudimentar como no restaurante mais sofisticado e não o dispensamos; em momentos diferentes, queremos tanto o vinho ligeiro como a bebida mais dura. Sabemos o que queremos e como queremos. Os sete pecados mortais decretados pelo papa Gregório Magno no Séc. VI, incluem já a gula, que também tem papel de relevo no Purgatório de Dante. Os excessos existem, sabemos bem, e o flagelo do alcoolismo é uma realidade. Mas o vinho está acima da suspeita, em sim mesmo explica-nos e emancipa-nos. O resto é livre-arbítrio, além de que sempre beber um copo de vinho com um amigo estará no quadro de honra do que fizemos na vida. Não nos tirem as tabernas.