sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Vinho: Poças Branco da Ribeira Douro branco 2021 (12%) | Manoel D. Poças Junior

Classificação Omnívoros: 96
PVP: 55 euros
Arinto (75%) e Códega (25%).  Uvas da parcela da Ribeira da Teja, na Quinta de Vale de Cavalos, Numão. 2.500 garrafas 75cl e 120 garrafas 1,5L. Solos de transição xisto-granito. Castas vinificadas separadamente, fermentação em barrica após decantação. Estágio dez meses em barricas novas de carvalho francês 300L. Floral de grande intensidade no nariz, a revelar um arenito pungente e capaz. Incrivelmente eficaz o dueto que estabelece com a Códega, a redefinir o perfil da casta tal como a conhecíamos até agora. A boca mostra um grupo cítrico assente numa acidez que o Douro raramente conheceu. Tarda um par de minutos até reagrupar no palato, para logo a seguir fulminar com facilidade gorduras, molhos e até sushi, cenário gastronómico que nem a maior ousadia ousou sonhar no grande vale vinhateiro. Enologia genial e sideral, Portugal tem mais um grande branco. Prato: tortilha de batata à espanhola.

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Vinho: As Tourigas da Discórdia Alentejo tinto 2020 (14%) | Edual/HVE

Classificação Omnívoros: 86
PVP: 16,5 euros
Touriga Franca e Touriga Nacional. 1.800 garrafas. Fermentação em inox, estágio em barricas de carvalho francês de 300L. Granada profundo. Aromas cítricos a flor de laranjeira e balsâmicos a folha de eucalipto. Boca copiosa e complexa, a sugerir ameixa preta madura e chocolate negro. Final equilibrado  rico. Prato: carne de porco com amêijoas.

Vinho: Herdade do Peso Sossego Alentejo branco 2021 (12,5%) | Sogrape

Classificação Omnívoros: 83
PVP: 5 euros

Antão Vaz (75%), Arinto (20%) e Roupeiro (5%). 380 mil garrafas. Fermentação e estágio inox. Amarelo palha. Aromas de flores brancas e nêsperas verdes. Equilibrado e vibrante até ao final, que é médio e fino. Prato: Frango de churrasco.

terça-feira, 11 de outubro de 2022

Ensaio: Boémia lisboeta e outros fados.

 Pelo fado é que vamos


A noite é muito mais que uma passagem, é lugar móvel e cintilante, pleno de minúsculas nuances que puxam modo, receituário e texturas únicos que nos fazem ficar longas horas à mesa. Desfia-se rosários de memórias, canta-se baixinho e celebra-se a vida no que tem de mais imanente. Vamos a ela?


Sair para ouvir fado mudou na forma mas não tanto no conteúdo. É por exemplo ainda uma experiência com o imperativo do “silêncio que se vai cantar o fado”, momento em que nós, portugueses olhamos de soslaio para os turistas que insistem em não acatar a regra. Continuam na conversa animada e na gargalhada gutural, como se estivessem num bar comum, em que lhes são concedidos todos os direitos. Fingem que não sabem, mas nos clubes de jazz de gabarito internacional sentam-se quietos e mudos, como se de santuários religiosos se tratasse. Confesso que ainda não percebi esta espécie de afasia estrangeira, mas jamais abdicarei de frequentar o fado, os seus copos e as suas mesas. A primeira vez de que tenho memória foi com Alfredo Marceneiro e a sua inconfundível voz, dir-se-ia que de transição, mas fortemente mobilizadora. Era avô e vizinho de amigos e tive a sorte de ser assim iniciado na boémia lisboeta do fado. Em miúdo tinha uma fixação grande na voz do gigante Fernando Maurício, que só viria a conhecer aos 25, mas a que voltei repetidamente depois. De certa forma fui entrando nesse mundo fascinante e exclusivo e aprendi com ele a esquecer-me das horas e dos grilhões. A forma exterior é ruidosa, é certo mas a viagem é sobretudo interior e respeita por isso sempre os princípios fundamentais da boémia.

Aprendi cedo a boa companhia que pode ser um tinto alentejano encorpado, ao reparar numa mesa de quatro pessoas que iam regando o fado com uma garrafa de Mouchão. Dado à experimentação como sou, pedi uma garrafa para a nossa mesa desse mesmo vinho e a ligação com as vozes femininas de contralto por que tanto se pauta o fado ao mesmo tempo que evoca veludo e sensações tácteis tão agradáveis, dei razão aos pacatos foliões. Fez-me lembrar o registo grave de um violoncelo, que sempre associarei à voz de pai, por razões óbvias. Não fui tão espartano quanto eles e pedi linguiça frita para picar e foi o céu. Cheguei a ter vontade de partilhar a linguiça frita em álcool, picantinha e atrevida, mas contive-me e ao mesmo tempo poupei no material, o que os meus companheiros de fado agradeceram. O trabalho do tinto na gordura disponível e abundante, de qualquer forma não deixou de me impressionar muito. Rendição total. Tem mais de duas décadas esta iniciação e nunca mais o pleno aconteceu. Talvez fosse do momento, mas considero que ter passado a dispensar a refeição completa ajudou muito a perceber o fado, a boémia e a boa companhia e o quanto uma sequência gastronómica errada pode ser uma catástrofe.

Os tempos que vivemos hoje são bem outros, distantes do modelo standard rígido do jantar, do inferno dos talheres e do tilintar dos copos brandidos como chocalhos. Por incrível que pareça, surgiu toda uma nova oferta na noite da guitarrada e das vozes perfeitas, trabalho de alma feito com afinco e paixão. Estamos no domínio do esclarecimento, muito mais do que do segredo, e uma casa de fados com uma boa garrafeira e serviço de vinhos pode fazer toda a diferença. 



Rendição na Casa de Linhares 

Beco dos Armazéns do Linho 2

Alfama

1100-559 Lisboa

20:00-2:00

Fecha: Não fecha

Preço médio: 40 euros

Movido pela figura icónica de Jorge Fernando, grande descobridor de talentos, ele próprio talento sempre a considerar, visitei a Casa de Linhares, perto da Casa dos Bicos. Já se chamou Bacalhau de Molho e era daqueles lugares onde se entrava à hora de jantar e só se saía de manhã, o fluxo pelas ruelas era tal que bastava ficar quietos que a acção acontecia. Hoje está mais organizado e além de rebaptizado passou a ter outro estatuto. Se queremos ouvir a fabulosa Fábia Rebordão, é ali que temos de ir, pelo que convém reservar mesa. Oficiam na cozinha dois cozinheiros de truz, Samuel Mota e Ivo Brandão, cheios de sangue na guelra e vontade de igualar nas suas artes os fadistas residentes no canto. O menu Saudade - tinha de ser! - tem praticamente tudo de que é feito o fado à mesa. Custa 70 euros apenas, acrescidos de 15 euros como taxa de espectáculo. Não inclui vinhos, por isso à laia de sugestão atrevo-me a dar largas à inspiração e à fantasia, propondo harmonizações felizes para os diferentes momentos, sem a preocupação de confrontar com as existências em cave. Vejo algumas pessoas a beber cerveja, mas a grande maioria opta por vinho, o que é só por si já um excelente sinal. Clientela repartida, locais e estrangeiros, idades mais diversas, concentração na faixa dos 50/60 anos.

A empreitada começa com presunto e queijo, etapa petisqueira a que ninguém se faz rogado. O presunto é de cura de arejamento, à boa maneira espanhola, pelo que a leitura vínica deve ser de carne fresca. Sabor moderado no sal ornamentado pelos frutos secos, bolota e castanha cozida. Estamos numa casa que junta excelência musical à gastronomia de uma forma inteiramente natural e orgânica, como se tivesse sido sempre assim. Tenho alguma inclinação para a eleger como o melhor restaurante de fado, pela capacidade de nos tirar da cadeira e viajar pelo espaço sideral, onde tempo e espaço se fundem num só. A sequência da refeição corre sem qualquer perturbação que não seja a muito bem vinda intervenção dos brilhantes cantores.
Há um tártaro de atum que não pode deixar de ser conferido, equilíbrio grande de sabores, texturas e até temperaturas, cuidado supremo posto nas diversas harmonias. Sobe o drama quando enfrentemos os brilhantes camarões ao alhinho, picantinho e a desinstalar-nos, pede um bom branco de Palmela. Apesar da vezeira opção pelos croquetes de alheira, aqui sabem a céu, sabores de sempre, texturas felizes que nos fazem regredir quase à infância, pode bem coincidir com um primeiro fado de Fábia Rebordão e aí é mesmo o céu. É forte e inteira a sua voz telúrica, sem falhas e por isso nos entregamos aos pratos seguintes e nos protegemos da lágrima fácil. que fado é sempre canção grave. E vêm para a mesa pataniscas de bacalhau com arroz de tomate que todos achamos que sabemos fazer mas poucos na verdade dominam a especialidade. Crocantes, bem secas de gordura e outros excessos, estão capazes de enfrentar a contenda mais renhida. O arroz de tomate puxa tinto está mais que na altura de nos rendermos a um alentejano de truz. Garrafeira dos Sócios, de Reguengos de Monsaraz é um clássico que puxa às raizes da portugalidade e aqui apetece bem, há bondade no romance entre tomate e tinto encorpado. Ao som de bom e texturado fado vamos ao nível supersónico das emoções. Merecemos bem o prato de conforto que se segue, guisadinho de rabo de boi. O teatro das emoções está ao rubro e nós aqui repousamos. Quem canta fado sofre, é certo, mas que o ouve sofre ainda mais. Mas tudo acaba bem, com um digestivo adequado e um salutar e regenerador creme de limão. Neste momento já estamos em órbita, prontos para mais fado pela noite fora.



O Faia

Rua da Barroca 54

1200-050 Lisboa

Tel. 213 426 742

Chef André Pola

20:00-2:00

Fecha: Domingo

Menus a partir de 65 euros, com fados

Casa de grande tradição, sempre com pergaminhos de excelência, pratos únicos e de sempre. Lucília do Carmo, mãe de Carlos do Carmo e figura icónica da boémia lisboeta, foi sempre - e de certa forma ainda é - a alma da casa, que hoje conhece tempos modernos, a que damos as boas vindas. É uma casa alegre, vinho e comida não nos deixam jamais abandonados nem solitários. A família Ramos representa a jovialidade necessária e a mantença que procuramos e desejamos. É inefável a salada de fígados de aves salteados com vinho Madeira e Pêra Rocha, e sai da cozinha uma sopa de peixe com poejo de antologia. Pede trinados bem repenicados o lombo de bacalhau à Faia e antes de nos entregarmos à tristeza calculada mais vale enfrentarmos a belíssima perna de cordeiro assada. Cardápio longe de magrezas e torturas, que a vida é para se levar com alegria. Olaré, se é! Todos os dias são bons e animados, a cozinha é de truz e a garrafeira é de gabarito.



Mesa de Frades

Rua dos Remédios 139

1100-221 Lisboa

Tel. 917 029 436

19:00-2:00

Menus a partir de 60 euros, com fados

Fecha: Domingo

Colecção notável de figurados de Santo António de Lisboa. A capela de um velho palácio de Alfama foi e continua a ser casa de fadistas de referência, são inúmeros os grandes fadistas que passam por este espaço único nas suas transumâncias habituais. Quando se canta o fado, a porta é trancada, nos intervalos está-se num ambiente muito especial. Ao fim de três ou quatro fados volta a abrir as grandes portas, à maneira da vigília em tempo de novena. Pratos de tacho fantásticos, serviram certa noite uma vitela assada inesquecível. Claro que há bacalhaus muito bons e petiscos ditos simples mas que dão muito trabalho a fazer. A cozinha pode bem puxar pelos galões, daqui ninguém sai insatisfeito. Há vinhos ajustados à clientela e ao cardápio praticado.



Clube de Fado

Rua São João da Praça 86

1100-521 Lisboa

Tel. 218 852 704

20:00-2:00

40 euros por pessoa.

Fecha: Não fecha

Templo do gigante guitarrista Mário Pacheco. Serviço fantástico, silencioso como se quer, discreto e eficaz como se deseja. Alinhamento brilhante de fadistas. Não se cobra taxa de espectáculo quando se vai para jantar. À mesa tem tudo o que nos faz felizes A sala é grande e quando o fado aperta fica pequena, são gigantes os fadistas que aqui oficiam e assim é que deve ser. Há que dizer que se formam aqui muitos profissionais de cozinha e sala que literalmente levam a sua ciência complexa para paragens bem distantes. Todos sem excepção acabam por um dia visitar e nesse sentido faz-nos sentir como num autêntico clube. Não há diferenças de tratamento entre turistas e portugueses, aqui está-se mesmo como em casa. São irresistíveis os cogumelos salteados com presunto de Chaves, e para uma noitada longe não precisamos de mais nada desde que não falhe o Mouchão tinto pelo menos para cumprir a fantasia inicial. Depois temos muito por onde nos espraiar. Se a noite está difícil, basta um copo e um pratinho do dito de Chaves, mas aqui é tudo fácil, há que dar dispensa ao relógio e prometer que até ao primeiro raio de luz da manhã permanecemos. As simples pataniscas de bacalhau com arroz de feijão satisfazem bem, é nesta casa que o polvo à lagareiro é o melhor da cidade e a carne de porco à alentejana prende-nos a alma para sempre. É ir!



Sr. Vinho

Rua do Meio à Lapa 18

1200-723 Lisboa

Tel. 213 972 681

20:00-2:00

55 euros por pessoa.

Fecha: Domingo

Fundado em 1975 por António Mello Correia, Maria da Fé e José Luís Gordo. É lugar mítico, onde perdição e felicidade casam para a vida. Aprendi muito nas seroadas com Paulo Parreira na guitarra, é daqueles músicos que tira tudo do seu coração para nos dar. Estou obviamente a ser injusto para com as dezenas de grandes guitarristas e fadistas que me teleportaram ao paraíso, mas quem não o conhece tem de conhecer ir por ele. Também se vai pela comida e vinhos, ambos nos tratam nas palminhas. A perdiz estufada só perde para a do Solar Bragançano, e é igualmente amor de perdição. A dupla Bacalhau à Sr. Vinho e Bife à Sr. Vinho afina-nos as cordas todas, e é tanta a emoção que até julgamos conseguir cantar fado. Cuidado que é mera ilusão. Quem gosta de um bom tinto bairradino deve atrever-se com o cabrito assado no forno que aqui se processa. Temperado a rigor, pede duelo líquido muito sério e na garrafeira do Sr. Vinho há tesouros para desenterrar.



Fado ao Carmo


Rua da Condessa 52

1200-122 Lisboa

Tel. 912 115 677

19:30-2:00

Menu jantar a 45 euros

Fecha: Terça


António Saraiva e Marta Bogalho na cozinha, Luís Guerreiro na guitarra, Rodrigo Costa Félix fadista e muitos passantes e oficiantes que fazem com que cada noite seja uma experiência radicalmente diferente da anterior. Vá depois das 22:30 para o petisco e a fadistice. São amigos da casa Mariza, Kátia Guerreiro e vários outros, mas é só nesta que encontramos o fantástico doce Karamelo Salgado, criação - adivinharam! - da fadista Kátia Guerreiro. Já que estou nas doces tentações, rendo-me também ao pão-de-ló de Ovar magnífico que aqui se serve. Croquetes de carne, bolinhos de bacalhau, peixinhos da horta, pastéis de massa tenra irrepreensíveis e um pica-pau do lombo de novilho do outro mundo vão amparando as inevitáveis e vezeiras lágrimas, quando optamos pelo petisco, no respectivo horário. A carta de vinhos é acessível e com boas novidades. Sei que se nota que estou a falar de casa de bons amigos, mas sei que depois da primeira visita se vai tornar na vossa casa de fados favorita. Ou mesmo restaurante. Se chegar a tempo e horas para jantar vai ter tratamento de luxo. Bacalhau à Brás daquele que a gente gosta e nunca encontra, bife de atum à algarvia e barriga de porco alentejano são exemplos das delícias que aqui encontra para enfrentar o fado com outra alma.