terça-feira, 23 de abril de 2019

E viva 2017!

Acontece pela primeira vez na história da Symington e aconteceu muito poucas vezes na história geral do vinho do Porto, a declaração clássica de dois anos consecutivos de Vintage. Verdade é que à beleza e harmonia dos 2016, seguiu-se a potência e força dos 2017. Notável e histórico.

A natureza tem tanto de cíclica quanto de imprevisível. No admirável mundo do vinho não há duas colheitas iguais e os padrões são difíceis de estabelecer. O vinho do Porto é a um tempo ponta de excelência do universo vínico global e demonstrador do quanto é expressão da natureza. Cada campanha vitivinícola é irrepetível e única, a história tem-no demonstrado a arrepio até do nível elevado de conhecimento enológico e vitícola atingido. Estamos num patamar mais elevado a cada ano que passa, a ponto de num ano considerado clássico para vintage, a categoria excelsa do vinho do Porto, ao perfilarmos os vinhos produzidos damos com uma maioria de vinhos excelentes e os restantes muito bons. Não há região vitícola no mundo inteiro que dê este tipo de prova; mesmo nas grandes denominações de origem e terroirs famosos, a excelência é atingida apenas por uma minoria. Contribuição forte por isso para a nossa auto-estima, estamos melhor que nunca na nossa multissecular história. No entanto, estamos habituados a ter três ou quatro declarações clássicas de vintage por década e esta em que ainda estamos deu-nos apenas 2011 e 2016. Apesar da fantástica qualidade e diversidade produzida, o hiato de cinco colheitas sem vintage clássico chegou a por o mercado preocupado. O momento que estamos a viver é épico, com a Symington a declarar 2017 como ano de vintage clássico, ou seja com todas as suas marcas de topo a publicar vinhos do Porto desse ano. Nos quase 140 anos de história que a família tem no Douro e Porto, é a primeira vez que declara dois anos consecutivos. E qual a explicação? A natureza. É francamente raro conseguir-se condições excelentes em dois anos consecutivos. No caso de 1991 e 1992, umas casas declararam um ano, outras outro e de facto talvez pudesse ter já acontecido haver declaração nos dois anos, mas a história e o tempo tem demonstrado o acerto das decisões tomadas. Vamos ver como vão os restantes produtores reagir mas para já o vinho do Porto está em festa.
As condições da campanha de 2017 foram muito semelhantes às do mítico ano de 1945, especialmente nos aspectos de muito fraca pluviosidade e baixas produções. Em 2017, as perspectivas foram sempre pouco animadoras, com perdas de cerca de 20% de produção nas vinhas detidas pela Symington, num ano que chegou a ser desolador, com temperaturas a atingir máximos históricos e a chuva a teimar em não vir. As cepas sábias do grande vale do Douro, contudo, entenderam que as uvas iriam ser melhores ainda que em 2016. Não é só a natureza que é prodigiosa, a reacção da vinha é tanto ou mais surpreendente. Quando estava tudo relativamente sossegado em pleno Verão de 2017 de repente os cachos compuseram-se provocaram a vindima mais precoce de que havia memória, fazendo toda a gente interromper as férias para fazer a vindima. Fruta excelente, em particular a Touriga Franca, facto reconhecido por todos os produtores do Douro, concentrações óptimas e maturações fenólicas no zénite forçaram a vindima, e ainda bem. A prova dos vintages 2017 foi a todos os títulos notável, mesmo com a dos 2016 ainda viva na memória. À elegância dos 2016 seguiu-se a potência e mineralidade dos 2017. Dois perfis radicalmente diferentes, com a surpresa extra de se tratar de dois anos consecutivos. Claro que nós, apreciadores do vinho do Porto, só temos a ganhar e a partir de agora, por muitos e bons anos, seremos sempre obrigados a provar 2016 ao lado de 2017, em duetos, o que é ainda melhor. Boas provas!

18 - Warre’s Vintage Porto 2017 | Symington Family Estates - 75 euros
É o normalmente o vintage mais feminino e suave da Symington, e este ano, mantendo embora a estrutura equilibrada, foi a grande surpresa da prova. Vigor, taninos macios mas muito presentes e um comprimento interminável na boca. A Touriga Franca a mostrar claramente os seus trunfos, neste vinho cheio de força e futuro. É mesmo de comprar para guardar e ir bebendo, prazer garantido.

17 - Cockburn’s Vintage Porto 2017 | Symington Estates - 70 euros
Entrada de boca muito elegante, para depois crescer em volume de boca e intensidade. Tem notas terrosas, cítricas e florais, a base é principalmente de Touriga Nacional e neste vinho há uma mudança saudável do registo, a acompanhar em termos de evolução no tempo. Mais focado e rigoroso na combinação entre estrutura e acidez.

18,5 - Dow’s Vintage Porto 2017 | Symington Family Estates - 95 euros
Mesmo sabendo que o ano foi de luxo para a Touriga Franca, as notas clássicas de Touriga Nacional da especialíssima Quinta Senhora da Ribeira em que assenta este vintage são deliciosas e cativantes. Violetas e alfazema no nariz, alcaçuz e forte mineralidade na boca ficam na memória, colocando este vintage na lista de preferências do ano.

17,5 - Graham’s Vintage Porto 2017 | Symington Family Estates - 95 euros
Cerca de metade da composição deste vintage é Touriga Franca e a copiosa Quinta dos Malvedos marca a metade da proveniências das uvas do lote. O resultado é a assinatura de doçura pronunciada, característica da marca e que nesta edição se mostra equilibrada e com capacidade de guarda.

19 - Quinta do Vesúvio Vintage Porto 2017 | Symington Family Estates - 75 euros
Força, exuberância aromática através de notas de alcaçuz e bagas de arbusto, frescura notável na prova de boca, a exprimir mentolados e cogumelos frescos, num conjunto que cativa e deixa memória. Vinho cheio de personalidade e que se desdobra em nuances matizadas ao longo do final de boca, rico e seco.

19,5 - Capela da Quinta do Vesúvio Vintage Porto 2017 | Symington Family Estates - 150 euros
Pode considerar-se um vintage dentro de um vintage, pois só se produziu em três anos - 2007, 2011 e 2016, até chegar a este, produzido maioritariamente a partir da vinha da Capela, um dos micro terroirs da Quinta do Vesúvio, de vinhas velhas. O perfil único de concentração a par da intensidade que proporciona na boca é quase viciante - notas de chá verde - e a presença de Sousão sente-se pelos elementos terra que inspira.

19,5 - Graham’s The Stone Terraces Vintage Porto 2011 | Symington Family Estates - 200 euros
Mais um micro terroir do universo Symington que se tem vindo a afirmar com características excepcionais, este, como o nome indica, composto por socalcos tradicionais da Quinta dos Malvedos. Aromas de bergamota e notas tropicais - maracujá - a construir um ambiente que vamos encontrar também na boca. Taninos muito finos, densidade notável, estrutura indestrutível, com a acidez bem afinada.

The Fladgate Partnership declara vintages 2017

E aconteceu mesmo! Taylor’s, Fonseca, Croft, Krohn, Taylor’s Vargellas Vinha Velha e Croft Sērikos acabam de ser declarados Vintage 2017. Ou seja, as quatro marcas principais da The Fladgate Partnership e duas mais de vinhas velhas. Maravilha, grande notícia para o vinho do Porto!
Depois de a Symington Family Estates declarar também os seus 2017 clássicos - depois de em 2016 ter feito o mesmo - agora podemos festejar em grande. Dois anos vintage clássico consecutivos é um marco histórico no vinho do Porto.

quinta-feira, 4 de abril de 2019

O fumo da paixão

Envergonha qualquer jornalista o levantamento feito pelo chef Nuno Diniz do fumeiro nacional. Em década e meia de trabalho tão discreto quanto intenso, anotou, visitou e provou mais de uma vez o que se faz de norte a sul do país. De forma simples, devolveu os louros aos produtores.

Vamos tentar ser pragmáticos e honestos para com o termo artesanal, pelo menos para admitir que continuamos a querer que tudo nos apareça feito e pronto à frente. Nesta altura do ano, grassam as feiras de queijos e enchidos nas grandes superfícies e supermercados, a oferta copiosa de uns e outros dá-nos a impressão de riqueza e qualidade e claro que nos aproximamos para ver mais de perto e cumprir o desígnio herdado dos romanos, manter uma despensa bem fornecida. Tudo certo, tirando a profusão e confusão de nomes, denominações de origem e certificações DOP ou IGP, que insistem em não significar necessariamente qualidade. Vamos a uma feira local de presuntos e enchidos e apetece-nos comprar tudo, ao passo que numa gôndola de um qualquer hipermercado a relação com cada peça é anódina e desprovida de história, remetendo-nos para o ardil do preço ou para o aspecto da marca. Está certo e compreende-se que tenha de ser assim, resulta directamente do comércio por que nós próprios puxámos e pelo quanto nos arredámos do contacto directo com os produtores. O chef Nuno Diniz, que conheci oficiante em casas de gabarito e junto de veneráveis, foi ao longo de anos - 14, diz ele - puxando o fio do fumeiro através das gastronomias regionais que temos. Movido pela função pedagógica, para que tem inegável talento, ligou-se à Escola de Hotelaria de Lisboa e ao longo dos últimos anos ancorou conhecimento precioso naquela casa, deixando nos corações dos criadores de amanhã a centelha do bom produto. E para gaúdio de alguns de nós, os normais, promoveu de tempos a tempos experiências de cozidos, espaço de experimentação da bateria de enchidos e fumeiro diverso que foi desbravando. Eu assistia à torrente com alguma circunspecção, confesso, mas como pessoa intelectualmente orientada que Nuno Diniz é, confiei que todo o comboio de informação iria um dia ter a uma estação feliz. Entre Ventos e Fumos, chama-se o livro que com a chancela da Bertrand foi lançado um livro que dá conta de tudo. Eu vivia constrangido com a evolução da lista dos produtos DOP que mostrava, vaga e pouco esclarecedora, limitando-se a listar e relatar, em vez de descrever. Na mais recente edição do cozido, servido num almoço memorável na escola de Lisboa, rondava os 80 o número de enchidos e carnes servidos. Cada um com a sua história, cada história com a sua peça.
Mas tudo isto é ainda quase nada, importante é a criação de relações - networking no seu melhor - entre as diversas comunidades que orlam o artesanato do fumo, e aqui surgem algumas perplexidades, todas positivas. Primeiro, a comunidade da cozinha erudita comparece e responde à chamada de Nuno Diniz, que nem sempre foi devidamente considerado um dos pares. Depois, o país inteiro, continente e ilhas, está atento e segue de perto os movimentos do chef Diniz, reconhecendo-lhe, só com isso, o que até agora tem sido impossível, que é representar a classe, independentemente de estilos e estatutos. José Avillez tem o dom da liderança, sem dúvida mas Nuno Diniz tem a neutralidade imperativa para a exercer. Espero vê-lo em funções muito em breve, precisamos muito de alguém como ele.
O assunto dos cozidos, a começar pelo famoso “à portuguesa”, que ninguém sabe bem o que é mas que todos mesmo assim o chamam ao peito, está no capítulo da cozinha de proximidade, um dos grandes redutos da cozinha portuguesa. Isso tem o imperativo imediato da geografia. Não tem sentido comprar um enchido de cada canto, atirar tudo para a panela e no fim chamar-lhe um cozido. Não é. Há por toda a Europa cozidos notáveis, destaco especialmente os do norte da Alemanha, sudoeste francês e Noruega, pela matriz forte de sabor e pela expressão de terroir e autenticidade que comunicam. E é qualquer coisa que vive nos lares e se executa em festa, com sentido de partilha. Nós também a temos, note-se, a nossa mesa é toda ela de festa, mas tenho algum medo que se perca a essência dessa mesma festa e que o registo regional desapareça de vez. Os lineares dos hipermercados a isso nos conduzem, e era tão importante que utilizassem a força comercial para nos orientar! Temos bons enchidos, muito bons até, mas não podemos perder de vista os legumes e as carnes, nem podemos desistir de chegar à transformação da água em ouro, desde que se começa a cozer as diferentes partes até ao momento derradeiro em que cozemos as couves. Vejo as pessoas muito perdidas por ali, uma farinheira da Beira Alta, um chouriço de carne de Barrancos, uma morcela de arroz de Leiria, e não devia acontecer assim. Fundador o trabalho de Nuno Diniz também por isso, põe-nos a todos mais perto dos produtores, e devolve a estes o que é deles. E nós podemos começar a dormir descansados, temos líder!