domingo, 4 de junho de 2023

19 Cozinha caboverdiana: Cachupa de carne 12/Ago/2008 | Jornal Público

Ribatejano moderno para um prato que sabe a música


São destinos como o En’Clave que nos fazem olhar para a cozinha caboverdiana com a atitude certa, pondo-nos na calha da sua plena fruição. Além dos ingredientes que alquimicamente as duas magas Ângela e Augusta processam lá dentro, na sala há sempre música ao vivo enquanto se come na sala e no piso de baixo dança-se. Quem quer perceber a festa da mesa de Cabo Verde tem de entrar no ritmo e gingar, ainda que torpemente, ao som das “mornas” e “coladeras”. A morna é a mais portuguesa de todas, unindo como nenhuma outra o luso fado com os ritmos e calor africanos. Canta o amor, a saudade e as memórias de tempos e terras idas. Teve dois grandes vultos das letras e da música a colocá-la na órbita eterna das grandes músicas do mundo, Eugénio de Paula Tavares e B. Léza, ou Francisco Xavier da Cruz. Em tempos diferidos e de forma diversa, consagraram a morna como o canto oficial de Cabo Verde.

Eugénio Tavares nasceu na Ilha Brava em Outubro de 1867, quando o primeiro baptismo como Ilha de S. João já tinha cedido ante a sua orografia acidentada e a selva brava que apresentava. A sua mãe, filha de pai espanhol e mãe caboverdiana, morreu no parto, o que marcou a sua produção como poeta e escritor. Francisco de Paula Tavares, seu pai, era natural de Santarém, com negócios prósperos na Guiné. Tumultos tribais fizeram com que a mãe, grávida de Eugénio, procurasse refúgio na magnética Ilha do Fogo, sua terra natal. Já adulto e jornalista congrega, juntamente com o seu amigo Loff de Vasconcelos, uma elite cultural na Ilha Brava que hoje se sabe estar na génese da nação de Cabo Verde. Os poderes instalados levam-nos contudo ao exílio em 1900, fixando-se Eugénio Tavares na “portuguesa” New Bedford, nos EUA, onde acompanha, com um jornal que fundou – A Alvorada -, a já grande diáspora portuguesa. Regressa a Cabo Verde em 1910, logo após a implantação da República, passando a oficiar como redactor no jornal A Voz de Cabo Verde. Trazia no alforge muitos poemas e composições de sua autoria, mas foi no isolamento dos seus últimos 10 anos de vida, em Aguada, olhando fixamente o mar e o passado, que Eugénio Tavares compõe as mornas de antologia “Bidjiça” e “Nha Santana”, ambas dedicadas a uma sua grande apaixonada, que viu partir para longe.

Apesar das muitas efabulações feitas em torno do nome “B.Léza”, foi na verdade o pseudónimo que Francisco Xavier da Cruz escolheu para assinar a sua grande produção poética e musical. Na sua base está a jovem bela e rica Raquel – conhecida por “Beleza” -, por quem se tomou de amores, ficando prometidos em casamento. Era funcionário dos Correios na Ilha do Fogo e, dado à boémia e à dançarica fácil, certo dia não dá por um grande desfalque nos cofres que lhe estavam confiados. O seu futuro sogro repõe em segredo o montante desaparecido e o jovem músico é transferido para outra ilha. Emerge então o trovador B. Léza, materializando até ao fim dos seus dias a sua dor nas mornas que compôs.

A cachupa de carne é o prato do quotidiano caboverdiano. Cozinha-se e come-se ao som de mornas ou coladeras, fundindo-se numa coisa só os sons e os sabores. Bastam um violão e um cavaquinho bem tocados para criar o clima certo e existindo uma boa voz a experiência é plena. Plena foi também a conjugação vínica que alinhámos para a cachupa do En’Clave. Escolhemos o Casal da Coelheira tinto 2006 (3,99 Euros), das terras ribatejanas de onde o pai do poeta Eugénio Tavares partiu rumo a Cabo Verde. A boa acidez e ao mesmo tempo o perfil moderno deste tinto, produzido a partir das castas Trincadeira, Alicante Bouschet, Touriga Nacional e Touriga Franca, mostram aspectos da cachupa que confirmam a sofisticação culinária da casa. Servimo-lo com gozo a 17ºC, enquanto a morna crescia na sala.


Ingredientes

(para 6 pessoas)


500g de frango

500g de carne de vaca para cozer

1 chispe de porco

1 chouriço

1 morcela

1 farinheira

150g de toucinho

100g de banha

500g de milho pisado

2 cebolas

3 dentes de alho

1 folha de louro

400g de feijão-pedra

1 couve portuguesa média cortada em pedaços

1 cebola grande picada

2 dentes de alho picados

1 ramo de salsa

Azeite ou óleo de palma

Sal e pimenta, q.b.


Preparação


Põe-se de molho o feijão e o milho de um dia para o outro, cozendo-se na manhã seguinte. Cozem-se as carnes num tacho, cozendo-se as couves num outro. Num terceiro tacho ao lume, põem-se o azeite – ou óleo de palma – e a banha. Depois de esta derreter, deita-se a cebola e o alho, com ou louro e a salsa. Ficando a cebola translúcida, misturam-se as carnes cozidas já limpas de ossos e cortadas em pedaços, mexendo bem. Junta-se depois a couve cozida, rectificam-se os temperos a gosto, deixando ferver em lume brando para apurar. Antes de terminar a cozedura pode integrar-se o milho e o feijã, ou servir em travessa separada.

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