segunda-feira, 1 de março de 2021

Mesa: In Memoriam, Adelino Cardoso, desaparecido em 2019



Acabo de saber por uma publicação de Francisco Seixas da Costa que Adelino Cardoso morreu em 2019. Inconsolável, deixo relato e receita do inefável cozido por ele confiada, a que junto a frase de Jorge Luís Borges: "Morto, não faltará quem me empurre das balaustradas da Biblioteca de Babel". (in Ficcões). Estará no céu a fazer felizes os veneráveis, a que espero juntar-me um dia.

O Cozido do Painel de Alcântara

Quando nos perguntam qual é o mais português dos pratos portugueses, dizemos que não sabemos; que há muitos; que é difícil escolher um. Mas quando a seguir nos perguntam se não será o Cozido à Portuguesa, dizemos que sim; claro que sim! Arquivado na categoria transmontana no matricial livro de Maria de Lourdes Modesto “Cozinha Tradicional Portuguesa”, já ninguém hoje pode reclamá-lo quanto à verdadeira origem. Faz-se em todo o lado, existe em toda a parte e, tendo embora alguns componentes longe da consensualidade, o povo português adora o cozido. E como é bom, quando é bem feito! Sabe à própria vida e cresce connosco, até que nos vamos e ele fica. Mais ou menos rico, tanto faz, adapta-se às vicissitudes tanto das vidas pressurosas dos citadinos, como dos que vêem na pressa o diabo. Certo é que a procura é muita e não há quem não saiba qual é o “dia do cozido” no seu restaurante predilecto. O do Painel de Alcântara, em Lisboa, são dois: Quarta e Sábado.

Adelino Cardoso, o proprietário oficiante, não tem mãos a medir. “É de longe o prato campeão da casa”. A preparação do cozido de Quarta começa na Segunda “e só às 12:10 é que consigo começar a servir”. Verdadeira obra-prima de sustentabilidade culinária, processamento alquímico que transforma a primeira água, na qual se cozem as carnes, no derradeiro ouro líquido, as couves e os legumes, nada do cozido se perde. E quem pensar que no “Painel” só os cotas vão ao cozido, que se desengane, que os de vinte e poucos colonizam o restaurante reclamando já cerca de metade do território. “Tal como a mim, deve-lhes fazer lembrar os sabores da infância”, diz o chefe Cardoso, que acrescenta carinhosamente: “o melhor cozido que eu comi na minha vida era o que fazia a minha mãe”. Parece que a juventude que de tudo experimenta, com tónica forte no fast-food menos interessante, converge no tradicional e, casando, até o faz em casa. Pode ser que nem tudo esteja perdido que os seus filhos e netos, também eles possam ter recordações vivas e eternas dos sabores portugueses.

Determinam o sabor de forma dramática os legumes que se utilizam. Daquele cozido da sua mãe, Adelino Cardoso lembra-se sobretudo “do sabor da hortaliça”. Beirão de Viseu, ainda tem o coração preso àquele viveiro de tudo o que considera bom. Tem fornecedores distantes – “só a vitela é que é comprada aqui em Lisboa; o resto vem tudo das Beiras” – mas que lhe permitem oferecer o sabor que procura. O vinho que escolhemos para acompanhar o fabuloso cozido do Painel de Alcântara vem ainda de mais longe e tem o seu cordão umbilical ligado às terras transmontanas do rio Douro. Chama-se Meruge 2004 (16 Euros) e é produzido pela Lavradores de Feitoria, empresa que tem sabido trazer a tradição para os terrenos modernos do gosto actual. Gostamos nele da leveza e da estrutura que apresenta; juntamente com a sua acidez fixa elevada – afinal, estamos no Douro – abraça com carinho cada peça do nosso cozido, ao mesmo tempo que nos recondiciona o palato, enquanto a cavaqueira se vai encarregando de resolver os problemas todos do mundo.


Ingredientes

10 pessoas


Carnes

4 chispes

2 orelhas

1 entrecosto

½ entremeada

½ cabeça


Enchidos

4 farinheiras

2 chouriços de carne

2 morcelas

2 chouriços de sangue


Legumes

4 couves lombardas

1 couve portuguesa grande

1kg cenouras

1kg de nabos

1 molho de hortelã (para a cozedura)


Acompanhamentos

1kg de feijão branco

1/2kg arroz carolino


Para a marinada das carnes

Vinho tinto

4 dentes de alho

3 folhas de louro

Sal e pimenta, q.b.



Preparação

Prepara-se a marinada com os todos os ingredientes e põe-se dentro as carnes durante um dia. Passado o tempo, tiram-se as carnes da marinada, cobrem-se de água e cozem juntamente com o chouriço de carne. Depois de cozidas, reservam-se. Na água que ficou, cozem-se os enchidos, que também se reservam. Entretanto, faz-se um refogado de azeite, cebola e alho para o arroz, utilizando-se parte do caldo das cozeduras para o cozer. Faz-se o mesmo para o feijão branco. Leva-se os legumes a cozer no caldo que resta, com um molho de hortelã dentro, até estarem cozidos e as couves tenras. Serve-se as hortaliças com as carnes numa travessa, o arroz e o feijão noutra, e num prato separado apresentam-se os enchidos.

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