sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Opinião: A importância de ser restaurador


Estamos em plena era dos chefs, são muito poucos os que na juventude decidem ir formar-se para ser empregados de mesa e quase nenhuns a querer simplesmente ser restauradores, com tudo o que vem com a profissão. É no entanto aí que está o ponto fulcral da operação e êxito de um restaurante. Como é que se inverte esta tendência?


Sempre venerei as segundas linhas, assim como sempre me impressionaram mal as ribaltas prematuras. Penso que decorre da natureza de qualquer profissão exercida de corpo e alma, preferir o trabalho à fama, assim como procurar a excelência em todos os detalhes. A profissão de restaurador - o melhor termo que encontrei até hoje - é além do ponto de convergência de todas as funções na operação de um restaurante, a mais importante de todas elas. As atribuições mais importantes são justamente aqueles por que ninguém dá, à excepção de quem tem muitos anos de experiência na área. E essa é a primeira grande razão para a falta de vocações, bem mais grave que a falta de cozinheiros ou empregados de mesa.


Quando se pensa num restaurante a partir do zero, junta-se normalmente uma equipa de especialistas para trabalhar conjuntamente no projecto. Tenho visto e acompanhado alguns desde o início dos inícios, com reuniões em chão de cimento cru e pontos de água e gás a brotar do chão sem perceber exactamente para quê. Há um arquitecto que trata de layouts de sala, iluminação, cores e mobiliário, que trabalha - quase sempre mal - juntamente com um projectista de cozinhas de produção, que juntos vão engendrando um orçamento que nunca se fica pelos números previstos; excede duas ou três vezes o que se pensava. E foi sempre porque não existia a figura do restaurador. Do homem que não espera pelo parecer do arquitecto; antecipa-se-lhe e faz o programa - é assim que se diz - para o espaço. Culpa-se frequentemente o arquitecto pelos desmazelos encontrados na exploração de um restaurante, quando o que aconteceu foi simplesmente o programa não ter sido pensado por alguém com experiência de facto. A pessoa de quem falamos é a única que pensa em tudo, e a quem depois se pede contas de tudo, sobretudo erros. É quem tem o peso da responsabilidade. 


Quantas vezes aspectos triviais de conforto tais como ruído, som e reverberação só são olhados depois da abertura, com custos brutais acrescidos? E a qualidade do som, quem a pensou? É um de mil pormenores de que invariavelmente todos os envolvidos se demitem, dizendo simplesmente que ninguém lhes disse. É por isso que não só não é fácil ter um restaurante como não querendo entrar por essas especificidades é melhor nunca chegar a ter.

São muito raros os chefs que têm esta percepção global e ao mesmo tempo minuciosa das frentes de operação de um restaurante. Os seus conhecimentos quando muito são úteis na definição inicial da cozinha, copa e espaços adjacentes, e mesmo assim nem sempre têm conhecimentos suficientes para as decisões que tomam. A figura do gestor - restaurador - é muito importante, é uma espécie de timoneiro que sabe sempre para onde está o barco a ir. Fico sempre muito nervoso quando vejo um chef na televisão num daqueles programas que aceitaram fazer, a opinar sobre a luz, o conforto, os equipamentos e até a salubridade, muitas vezes sem saber bem o que estão a dizer. Digo isto porque infelizmente nem os aspectos culinários fundamentais estão bem dominados e às vezes é de deitar as mãos à cabeça, tal a impreparação. De nada adianta encenar - é de encenação que se trata - aberturas dramáticas de câmaras frigoríficas com tudo podre e o chef aos gritos para impressionar, até porque nesse ponto já não há nada a fazer, para além de deitar tudo para o lixo, limpar e repor stocks. Pelo menos tem solução; a falta de cultura de restauração não. E o meu pensamento enquanto estou a ver esses programas vai para os restauradores, proprietários, directores, chamem-lhe o que quiserem, que sustentam a verve e o topete com que os chefs falam em tom de julgamento. Acho que está tudo mal.


O bom restaurador é não só uma pessoa com experiência e solidez de conhecimentos, como também e principalmente um motivador. Enternece-me o carinho que vejo na forma como grandes profissionais da nossa restauração promover os que trabalham consigo. E na operação na sala é muito fácil perceber isso, sobretudo pela coreografia com que se movimentam, mas sobretudo pela empatia que revelam ter. O chef tem de estabelecer os standards de serviço de cada prato e isso tem de ser reavivado todos os dias, talvez até antes de cada serviço, o chef de sala tem de governar o trabalho todo de serviço e fluxos de trabalho, mas mesmo perante as brigadas mais brilhantes, a figura do nosso restaurador é determinante. Não há dois dias iguais e as pessoas não são autómatos; tem de existir o “middleman” para adaptar o serviço à sala, e a cozinha ao serviço. A formação é a um tempo a tábua de salvação de uma casa e a garantia de regeneração. Escolher dois ou três colaboradores e ir com eles a outros restaurantes, chamado-lhes a atenção para pormenores e puxando pelo seu sentido crítico para que vão dizendo o que lhes parece. Viajar é outro aspecto crítico que na medida do orçamento disponível deve ser posto em prática. Não há formação específica nas escolas de hotelaria para esta figura especial que afinal é aquela de quem falamos quando falamos das casas onde nos sentimos bem. Agora já sabemos como se chama: restaurador.

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