sábado, 14 de novembro de 2020

Vinho do Porto: A rainha e o Porto

 Vinho do Porto, confiança e património


Permito-me ceder à tentação de esgotar uma boa história ao revelar logo no início o seu desfecho. O vinho do Porto é muito importante para a rainha Isabel II de Inglaterra. Tenho a honra de ser um dos “happy few” que tem casa uma garrafa do Single Harvest Tawny 1952 da Graham’s (Symington Family Estates). Não sei que dizeres constavam nos rótulos das outras garrafas, mas a minha menciona explicitamente que não se destina à venda, o que no meu caso era inteiramente dispensável, nunca na vida a teria vendido, fosse qual fosse a oferta. Aliás, nunca vendi garrafa alguma que me tivesse sido oferecida. Esta que neste momento tenho nas mãos e que já está com o nível reduzido a cerca de um quarto, foi sendo bebida devagar e em tempos diferidos. O vinho que contém é muito especial e foi engarrafado num ano ainda mais especial: 2012, o ano do jubileu de diamante da rainha Isabel II, que marca o 60º aniversário da data em que se tornou rainha de Inglaterra. Os factos são conhecidos, a subida ao trono acontece francamente cedo pela morte de Jorge VI, seu pai e a celebração dessa memória teve sempre um efeito grande na rainha. A iniciativa de engarrafar um vinho do Porto de grande gabarito para comemorar a efeméride foi de tal forma bem recebida pela rainha que incluiu o vinho especial num acto público no castelo de Windsor. Os convidados eram monarcas de todo mundo, o que gerou uma cadeia positiva de afectos. E o afecto é muito importante na relação da rainha com o seu povo; tal como cantado no hino nacional, todos precisam e exigem que a rainha se sinta vitoriosa, feliz e gloriosa, e que reine por muitos e bons anos. O vinho, a propósito, é excelente, ainda hoje representa para mim um dos melhores tawnies - envelhecidos em cascos - engarrafados pela Symington. São os maiores proprietários de vinhas no Douro, e de certa forma funcionam como clã, com o aspecto particular de cada um individualmente ter a sua própria vinha, sinal de compromisso para com a terra, Portugal e vinho do Porto. Os Symington vieram para ficar.


Conselho é tudo


A criação da Commonwealth, um dos efeitos sensíveis do poder e cuidado de Isabel II, trouxe para perto do coração dos ingleses a produção de vinho pelo mundo. Não existe a figura do curador no caso do vinho, mas tem função semelhante Jancis Robinson, MW - Master of Wine - e OBE - Order of the British Empire -, com a confiança total da rainha na consolidação da fabulosa garrafeira da coroa, iniciada há vários séculos e que vai incluindo os títulos de maior gabarito. O vinho do Porto que repousa nas imensas caves reais é não só bebível como também recomendável, mas infelizmente não é possível o acesso ao livro de cave para aquilatar devidamente a presença de vinho do Porto no imenso oceano de vinhos do Velho e do Novo Mundo. Coincidimos várias vezes em eventos vínicos internacionais, privei com Jancis Robinson à mesa e em provas, mas confesso que nunca me lembrei de lhe perguntar sobre o acervo de vinho do Porto. A fomalidade britânica tem este sabor inconfundível da intimidade e é inteiramente governada pela distância. Sei que 1963, um dos melhor anos de sempre do vinho do Porto, está bem representado e que pontificam os vintages da Fonseca e da Quinta do Noval, mas isto imagino que seja apenas a ponta do iceberg. Em conversa há já alguns com a responsável pelas compras na Harrod’s, fiquei a saber da existência de um secretário da rainha para governar as caves reais. Na altura, era Simon Berry, por sua vez director do mítico negociante Berry Bros & Rudd, fundado em 1698. Foi-me prometido que o iria conhecer pessoalmente e fui lá especificamente para isso, mas um imprevisto impediu que nos encontrássemos. Imagino e espero que tenha sido por uma qualquer chamada urgente do palácio de Buckingham. Tem a confiança directa da rainha e é nele que repousa a responsabilidade grave da escolha dos vinhos para todos os eventos do palácio. Servir os Windsor e representar ele próprio três séculos de história familiar ininterrupta não deve dar a agenda mais fácil do mundo, por isso está mais perdoado, mas numa próxima vez que encontre Jancis Robinson vou ter o caderno pronto para tomar nota dos vinhos do Porto da preferência da rainha. Outra figura de peso no circuito vínico da realeza é o feitor - o termo inglês é yeoman - Robert Lange que é o homem da chave da garrafeira que muito poucos visitaram até hoje. A função desempenhada faz lembrar a dos Beefeaters na Torre de Londres, ambos são a um tempo guardiães e únicos responsáveis pelo que lhes é confiado. A Lancaster House, propriedade da rainha arrendada ao governo, fica perto do palácio e é onde ficam as caves onde estão guardadas cerca de 40 mil garrafas, muitas das quais seguramente raridades que poucos ou ninguém provaram. Por debaixo dos salões e guardados pela tal chave que só um tem. Na Feitoria Inglesa, no Porto, nos dias especiais estamos à mesa dezenas de convidados e no final da refeição somos conduzidos a uma sala contígua e onde está uma mesa da mesma configuração, para fazermos uma saúde à rainha. Com vinho do Porto, claro. E escolhido pelo secretário da Feitoria, como é evidente.


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