sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Sopas, açordas e migas

O pão é a base destas três grandes declinações da cozinha tradicional portuguesa. Que nunca se nos acabe o pão bom, genuíno e regional.

“Às sopas chamam açorda e à açorda chamam-lhe migas”, ouve-se na catita forma de cantar de António Pinto Basto a letra genial de João Vasconcelos e Sá no “fado corrido”. É uma das muitas imortalizações da forma alentejana de cozinhar e comer. Talvez por isso se atribua à grande província do sul a criação matricial do assunto açordeiro. É de lá pelo menos que vem a maioria das suas rábulas, e é lá que o costume de enrolar migas no pingue da carne; de fazer o piso de alho, ervas e especiarias; e de produzir sopas sápidas a partir de ingredientes pobres; se mantêm vivos no quotidiano das populações, independentemente do estatuto social e económico. E, se o termo açorda vem do árabe “tarid”, por sua vez declinação moderna de “ath-thurdâ”, já sopa só tem explicação no léxico germânico, derivando da palavra “suppa”. Com pequenas diferenças, ambas querem dizer o mesmo, mas exprimem realidades totalmente diferentes. A primeira é obviamente mediterrânica, enquanto a segunda é continental. Nada mais nada menos que duas das três grandes influências da cozinha portuguesa, só falta a atlântica, que responde contudo à chamada no capítulo dos caldos e proteínas. Uma açorda de camarão feita à boa maneira portuguesa pode levar caldo de caras de bacalhau, além do coado de de cozedura dos ditos e liga bem a amálgama de pão de véspera que se fez passar pelo alho e azeite. Início de conversa a raiar a turbulência, e já estamos onde devíamos ter começado: no pão. É que sopa, etimologicamente, puxa o ensopado e o pão em caldo, em alemão arcaico quer mesmo dizer “pão embebido em líquido”. Açorda dá automaticamente conteúdo semântico ao pão, desde que devidamente aromatizado e fervido de forma aturada. Migas é um termo que advém do verbo migar, cortar pequenino, esfarelar, e tem também o pão como objecto essencial. Agucemos o faro e vamos lá sair de casa ver o que é dele.

Pão, rei e senhor da açorda

Andamos de Norte a Sul e encontramos lá bem em cima, nos cocurotos da portugalidade, a Sopa Seca à Minhota. Vaca, presunto, galinha, couves daquelas. Os dois primeiros, duas horas a fervilhar em água, as duas últimas uma hora mais, dentro do caldeirão onde jazem os outros. Gasta-se mais uma hora de quentura com cebola e batata que se junta, depois 30 derradeiros minutos para cozer ali também toucinho, salpicão e tomate. Escorre-se tudo, faz-se num recipiente de ir ao forno um fundo de pão de véspera – cá está ele – colocando-se em camadas as peças que se foram cozendo. No final, cobre-se com fatias do mesmo pão e rega-se com o caldo bem quente, até ficar tudo ensopadinho. Forno brando com ele até tostar o pão e está pronta a servir a que se chama sopa seca, que quem conhece reputa de deliciosa. Interrogamo-nos todos acerca do papel do pão neste cozinhado e que tem isto a ver com o tema, mas depois de pensarmos na interacção do caldo com o amido do pão e apuramento da consistência, temos o grande paradigma construído e mais, temos um prato que será tão bom e saboroso quanto mais genuíno e bem feito for o pão. Viajamos para o interior, ainda lá em cima, e entramos em Trás-os-Montes, terras fria e quente, berço de muitos sabores portugueses. Clama por reconhecimento a assinatura berbere nas casas e costumes transmontanos, ao mesmo tempo que se lhes dá cada vez esse perfilamento. As açordas são seculares nestas paragens e nelas se emprega o pão fatiado em camadas, depois regado por um caldo de conteúdo copioso. Na Açorda de Espargos Bravos, vaca, galinha, presunto e salpicão são sacrificados por ordem para dentro da panela fervente, onde já se refogou em azeite cebola às rodelas. A cozinha portuguesa tem esta glória de a partir de fundos muito semelhantes criar sabores totalmente originais. Dura pouco mais de meia hora a cozedura das carnes e a criação do caldo que vai fazer a diferença. As pontas de espargos depois de estar apurado e cozem por meia hora dentro da remessa aquosa. Arrefece, metem-se-lhe dentro duas gemas cruas e mexe-se para não cozer. Numa terrina funda coloca-se o pão, espargos, carnes e de novo o pão, depois o caldo por cima, e forno com a coisa, regando-se com azeite a ferver. Quanto estiver tostado, está pronta a açorda.
As beiras são a um tempo espartilho elegante e filtro exigente, no tocante à tradição da sua mesa. Varrem Portugal de lés-a-lés, variando a proteína dos seus pratos. O bacalhau é consensual nesta ginástica geográfica e há muitas e variadas açordas. Na de Bacalhau com Tomate, começamos com um refogado de uma boa posta do fiel amigo sobre um refogado com muita cebola que, alourando, dá sinal para se retirar o tacho do lume. Já se vê que o bacalhau ainda só lasca e é isso que se lhe faz, extraindo-se ainda a pele. Espinha também não passa. Lascas para dentro da cebola, com lume médio que não queremos comer palha – será o caso se passarmos demais o bacalhau -, calda de tomate e um pouco de água. Liga-se mexendo e apura-se até ganhar gostinho gostoso. Depois, fatiazinhas do pão do bom, caseiro, a empapar no tacho. Finalmente, ovos bem batidos vertidos sobre a panzinada, mexer com certeza, evitando que cozam e ala para a mesa, para apanhar tudo no ponto certo. Escapam-nos aqui muitas nuances e açordas de outras coisas, abundantes e únicas das beiras, mas que nos reserva a vida senão aquilo que não conseguimos. Descemos e tendemos para poente até pressentir o mar, na zona de confluência do Ribatejo com a Estremadura. Temos terras lindas como Óbidos e saborosas como as Caldas da Rainha, criação de porcos e capoeira diversa, além de uma forma de cozinhar que já nos coloca na charneira com o Alentejo. Landal é terra próxima de Caldas e dá nome a uma das mais notáveis açordas do nosso país. Dá pelo nome de Açorda de Carne Frita à moda do Landal e consta de açordar um conjunto de carnes de porco, lombo e entrecosto, que após um terço de dia numa espécie de vinha de alhos, se leva a fritar na própria gordura, à maneira do torresmo. Mexe-se tudo com uma colher de pau e salta ovo batido para dentro. Esta açorda é tanto melhor quanto mais atrevidos formos, devendo utilizar-se, para o sabor supremo, carne da cabeça. Esta, como as outras, aligeiram se tivermos à mão hortelã, poejo ou coentros.

No sul açorda-se bem

O Alentejo tem inúmeros pratos de tradição e todos eles se recusam a deixar o sabor e prazer em mãos alheias. Ao mesmo tempo, é vastamente conhecida a simplicidade dos seus processamentos culinários. No capítulo da cozinha que agora tratamos, as Migas Gatas devem ser o exemplo mais impressionante. É, pelo menos, o mais inefável. Fundamental fatiar bem fininho o pão duro que depois se acama no fundo de um tacho. No almofariz produz-se um piso com alho e sal grosso, distribuíndo-se sobre o pão. Depois água no limiar da fervura, e dá-se tempo ao preparado com a tampa posta, lume apagado para ensopar bem. Faz-se uma cova no centro da papa entretanto formada onde se verte o azeite. Reacende-se o lume que se mantém sempre brando e com a colher de pau vai-se andando à roda como se fosse para moldar uma bola. Quando está feita e se mantém por si aproximadamente esférica, então as migas gatas estão prontas. Companhia abençoada para bacalhau assado. O Algarve é o Algarve e por incrível que pareça é onde muita da nossa atenção devia estar. Tem várias açordas, todas belas e prazeirosas, a melhor é talvez a Açorda Algarvia. Num pouco de água ao lume coloca-se conquilhas, amêijoas e demais bivalves que nos apeteça incluir. Essa água é depois utilizada para cozer camarão e mais tarde vai servir para abafar um refogado puxado que entretanto se faz. Junta-se o pão fininho juntando-se o miolo de bivalves, camarões e coentros bem picados. Finalmente, ovos batidos e toca a mexer.
Até a Madeira e os Açores dão um ar da sua graça e pelas ilhas, todas elas, não há quem não saiba a que sabe uma açorda, além de que se produz em todos os lares. A que se pode considerar Açorda Madeirense leva milho cozido, segurelha, batata doce e malagueta, e pão é de trigo, endurecido por 3 ou 4 dias. O pão é cortado em cubos antes de ser integrado no caldo. A Sopa Azeda do Faial é ainda mais contundente e tal como a parente madeirense, foi feita para suportar a míngua. Entra feijão, batata doce, batata normal e muito pão de véspera. Está visto que é pelo pão que vamos. Mesmo que nos falte tudo, que haja sempre açorda.

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