quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Amor, fogo e tango no Chiado

Dedico este post, que corresponde ao "A Crise vai de férias" do DN de hoje, à Mafalda. A sua vida, tal como a do Chiado e a minha, passou para outra dimensão em Agosto de 1988. Já passou um quarto de século!

O Verão pega nas noites e imprime-lhes tal energia que é impossível ficar em casa. Precipitamo-nos por isso para os lugares onde o vento corre mais ligeiro. A baixa lisboeta deixou para trás o infortúnio do incêndio do Chiado e, por efeitos dir-se-ia que de um qualquer húmus que se depositou na grande bolha de pedra oca que está por debaixo das ruas do Carmo, Nova do Almada e Garrett, irromperam sarmentos fundadores lá dessas zonas profundas, criando novas movimentações. Pastelarias, lojas, pequenos comércios, discotecas – lugares onde antigamente se comprava música para levar para casa – tudo parece ter sido mexido por mão gigante, com a ajuda da energia imanente lá de baixo. Deambula-se agora de forma moderna, as marcas são outras, às vezes com pressa outras vezes não, e sempre há tempo para recordar quieto parado, de costas para a rua e à frente de um qualquer vidro com coisas dentro as coisas que outrora ali nos agarraram para sempre. O Chiado é o banco de memória central de Lisboa e foi selado pelo fogo em Agosto de 1988. Há 25 anos.
Vencidas as três ruas chego ao Camões, não sem antes espreitar o rio lá em baixo, ao fundo da rua do Alecrim, depois do Cais do Sodré. Espreito na direcção oposta e sossego, ainda lá está a igreja de Sâo Roque, aqui mais perto o Tavares, fechado, parece que por pouco tempo mais; também ali os sarmentos do magma imanente estão prestes a rasgar, e penso oxalá a sina deste lugar mude e encontre mais quem queira dar que tirar. Lembrei-me que a Charcutaria (Tel. 213 460 672), lá em baixo, quase no Cais do Sodré, tinha há uns anos fechado e voltado à configuração inicial, em Campo de Ourique. Desci a rua para conferir e já não! Tinha reaberto; mais um sarmentinho viçoso a abrir mais uma porta. Manuel Martins continua autor das melhores empadas de Lisboa e sobretudo a iluminar aquele lugar com o brilho da sua cozinha, de matriz alentejana. Subo e cruzo o Chiado, depois de prometer a mim próprio que irei um dia sentar-me no Flores do Bairro (Tel. 213 408 288), restaurante do Bairro Alto Hotel, diz toda a gente que está em grande. Engraçada a mudança de nome, era até há bem pouco simplesmente… Flores. Não me esqueço da missão travessia, executo a diagonal na perfeição e desemboco na bonita rua do Norte. Enquanto ainda não é preciso passaporte para entrar no Bairro Alto, coloco-me dentro do perímetro e apanho a paralela de cima, sugestivamente chamada do Diário de Notícias. Está a cair a noite, já há movimentações de fadistas, um ilusionista itinerante carrega a sua caixa de truques para as próximas horas. Um vendedor de artefactos angolanos, supostamente potenciadores de energia, está sentado na entrada de uma casa, exausto; em casa de ferreiro… De repente estou em frente ao El Ultimo Tango (Tel. 213 420 341). Espreito e vejo Miguel Soares lá atrás, oficiante nas brasas e logo à entrada Fernanda, a sua mulher. Hoje iria agigantar-se a alma da casa, dentro de um par de horas ia cantar-se o tango! Oportunidade para antes conferir a arte do chef Soares, a propósito o único português membro da Academia Nacional de Tango em Buenos Aires. Carnes de antologia, trabalho impecável de grelha, batatas assadas e chimichurri, e depois espectáculo inesquecível, ambiente irrepetível, com o Duo Color a Nuevo. Disse-me Miguel Soares que a cantora Rocio Keuroghlanian não era profissional nem fazia parte do grupo, era uma amiga argentina. Abençoada, que bem cantou tangos bonitos e gloriosos como “Naranjo en Flor” (Virgilio e Homero Espósito, 1944), “La ultima curda” (Aníbal Troilo e Cátulo Castillo, 1956) e “Niebla del riachuelo” (Juan Carlos Cobián e Enrique Cadícamo, 1937). Ouvi e registei neste último “nunca más volvió/ nunca más lá vi/ nunca más su voz nombró mi nombre junto a mí”. O mar é todo uma coisa só e o céu é logo ali. Obrigado, Miguel.

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