quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Conversas com conservas, provas sem reservas

A qualidade dos produtos actualmente disponíveis no mercado justifica plenamente que se trate as latinhas como caixas de jóias, onde encontramos luxo, requinte e qualidade. Está na altura de chegar o vinho a estas iguarias que urge descobrir.

Foi na primeira metade do Séc. XIX que se iniciou timidamente entre nós a indústria das conservas de peixe, atingindo expressão significativa apenas já no limiar do Séc. XX. Setúbal era o grande centro e eram pólos importantes Espinho, Ericeira e Algarve. Terão os franceses rumado à nossa costa na sequência da míngua de pescado no seu país, que Oliveira Martins descreveu, no seu opúsculo “Portugal nos Mares” de forma clara e inequívoca: “as pescarias têm incontestavelmente tido progressos, em especial desde 1882, quando a sardinha fugiu dos mares da Bretanha e obrigou os franceses a vir fabricar as conservas entre nós”. Seja ou não esta a verdadeira razão, a verdade é que o assunto conserveiro se confunde com desígnio nacional pelo menos desde a primeira década do Séc. XX. Aprendia-se no ensino primário que éramos líderes mundiais nas conservas de peixe, especialmente sardinha. Ora, não gozando a sardinha de estatuto propriamente elevado à mesa, está visto que a conserva também não subiu a parangona. Era basicamente uma comida de resistência – e como foi, no tempo de racionamento da II Grande Guerra! - e sobretudo produto de exportação de grande sucesso pelo mundo fora. Entretanto, o atum em Vila Real de S. António levava já cerca de 30 anos de avanço, tendo as conserveiras aí existentes sido quase todas fundadas por italianos. Importa registar a forma sustentada e ao mesmo tempo explosiva com que tanto atum como sardinha revolucionaram a nossa cena pesqueira de forma irreversível. A diversidade de peixes disponibilizados em conserva ou em salmoura era grande e impressionante: sardinha, salmonete, cavala, tainha, robalo, besugo, peixe espada, linguado, rodovalho, pregado, pescada, eirós, gorz, cachucho e peixe agulha, e ainda mais alguns faziam parte da oferta de Setúbal, tanto em azeite (lata) como em salmoura (barrica). Em 1938, produzíamos 34 mil toneladas por ano, número notável face aos dados demográficos de então. Hoje, produzimos cerca de 58 mil toneladas, mas distribuídas apenas por sardinha, cavala e atum, com a sardinha responsável por metade da produção. Pelo meio ficaram diatribes de ordem diversa e que não cabe aqui explicar, para além de que as conservas entraram a certa altura em crise por desaparecimento de matéria prima. Perda de competitividade e subida de popularidade dos congelados são dois dos factores mais importantesA nota de desígnio nacional, contudo, vingou e eis que as conservas ressurgem, revigoradas e com laivos de inovação que outrora talvez não tivessem, ao nível de temperos e preparações. Fomos ter com uma casa 100% alfacinha que desde 1930 se dedica exclusivamente à venda de conservas. Na Rua dos Bacalhoeiros, a Conserveira de Lisboa é um ponto de visita obrigatório para os turistas que visitam a capital e é um prazer de se ver. Vemos ali mesmo embalar as latas com as marcas Tricana, Minor e Prata do Mar, e todas empilhadas no armário expositor enchem a vista. Dando estatuto de petisco às conservas, todas produzidas no estilo tradicional - o peixe é cozido em vapor antes de ser aparado e embalado -, quisemos ver como funcionariam os produtos escolhidos por Tiago Cabral Ferreira com alguns vinhos portugueses.

A prova

Na mala, levávamos algum preconceito, não já em relação à lata de conserva em si, mas em relação aos temperos tipicamente utilizados nas conservas e que ditaram para nós a escolha dos vinhos. Alinhámos o Prova Régia Premium DOC Bucelas branco 2011; Quinta da Casa Amarela DOC Douro rosé 2011; Gravato Colheita Touriga Nacional DOC Beira Interior tinto 2006; e Contos da Terra DOC Douro tinto 2010. O denominador comum foi uma acidez bem marcada, para fazer face à gordura que subjaz a todas as conservas e os pontos de diferenciação prendiam-se com o balanço de álcool e taninos de cada título. Às castas não demos grande importância, abordagem que acabou por se revelar válida; através da sequência da prova, o importante é mesmo a destruição da proteína na boca e o que se recombina no palato, em termos de temperos, notas aromáticas dos vinhos e o próprio sabor das coisas. Afinal, é de sabor que se trata. A grande surpresa da prova foi a personalidade de cada conserva, sempre a impor-se pelas suas virtudes e a exigir muito dos vinhos. Curiosamente, as boas harmonizações foram inequívocas, mostrando que estávamos a lidar com comida real, boa e cozida no seu ponto óptimo. Uma experiência de lavagem do preconceito em relação às latinhas, que antigamente se abriam quando não havia “comida a sério”.

Abalone ao Natural (unidade) | AzorConcha – 30,75 Eur
Também conhecido como “lapa burra”, este monovalve está a ser recuperado e criado nos Açores e é um dos mais saborosos. Carne rija e firme, muito aromático. Andou particularmente bem com o rosé da Casa Amarela, resolvendo as notas iodadas e intensas a mar.

Sardinha em Azeite Puro (120g) | Tricana – 2,08 Eur
Corresponde ao modelo clássico, tirando a muito boa qualidade da sardinha utilizada e a correção da cozedura. Impecácel, a firmeza da carne. Curiosamente, deu-se bem com o Gravato e o Prova Régia, por razões diferentes. O branco foi direito à estrutura gorda da sardinha, enquanto o tinto casou bem com a textura da carne, num efeito interessante.

Polvo fumado em Azeite (120g) | Tricana – 2,79 Eur
Novidade da casa, existe há apenas alguns meses, sendo apresentado em pequenos toros, de carne firme mas facilmente mastigável. O fumado está algo pronunciado, o que exigiu mais trabalho dos vinhos. Foram os Douros, tinto e rosé, que venceram a contenda, mais o primeiro até do que o segundo. O sabor muito vincado do polvo precisou da força do tinto para se realizar plenamente na boca.

Ovas de Sardinha com Tempero (120g) | Tricana – 12,77 Eur
Num caldo fantástico, ligeiramente picante, são oferecidas ovas de recorte irrepreensível. Há um ambiente muito citrino a marcar a prova de boca, que arrasou totalmente todos os vinhos menos o Gravato, que da sua rusticidade e estrutura extraiu as armas certas para derrotar a proteína.

Cavala em filetes (90g) | Tricana – 1,67 Eur
Esta foi talvez a melhor conserva de toda a prova. Equilíbrio fabuloso e muita harmonia na boca, a criar bom clima para o rosé duriense, que entrou muito bem.

Bacalhau com alho (120g) | Tricana – 3,84 Eur
De receita bem clássica e popular, esta foi a conserva mais difícil de harmonizar com vinho. Sobre a processamento, nada a dizer, altamente recomendável, é petisco para se servir directamente a visitas inesperadas. O vinho que entrou melhor foi o Gravato, conseguindo a tarefa quase impossível de integrar todos os sabores presentes.

Cavalinhas em Azeite picante (120g) | Minor
– 1,57 Eur
Apresentação impecável, e sabor muito definido. Um pouco contra o que se esperava, a melhor harmonização foi com o Prova Régia. Houve uma “dança” perfeita entre os temperos da conserva e as notas aromáticas do vinho, tudo bem intenso.

Carapaus em tomate picante (120g) | Minor – 2,25 Eur
Apesar da designação, é mais o peso das especiarias presentes neste conserva do que propriamente o picante que determinam o caminho vínico. Aqui foi rei e senhor o tinto do Douro, que cobriu com o seu manto suave a rugosidade e aresta dos carapaus.


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