sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Pêras, Pêros e Maçãs

Fazem parte de praticamente todas as dietas prescritas pelos nutricionistas, como fonte de saúde e rejuvenescimento. Entre nós, portugueses, é fruta de Verão e há que fazer-lhe as honras com tartes, compotas, licores e receitas de sempre.

Afinal há conversas que são mesmo como as cerejas. Em plena Beira Baixa, onde as ditas têm virtude secular, pelo extremo rigor do Inverno e a paciente maturação do fruto, descobriram os mais antigos que nós que também a macieira gostava da hibernação prolongada. Gardunha e Estrela são os maciços que fazem bloqueio aos ventos atlânticos, criando uma região relativamente extensa onde as coisas correm bem à fruta, encontrando produção serôdia em relação a outros lugares. Seria bom que ainda tivéssemos acesso às variedades desses primeiros tempos, mas não há hoje nem rasto da tal maçã original. Este éden tem, ao contrário do da tradição bíblica, memória curta. Definiram-se-lhe de qualquer forma praças e quartéis específicos. Começamos pela Indicação Geográfica Protegida (IGP) Maçã da Cova da Beira. As mais frequentes, segundo regulamento europeu de 1996, são a Golden Delicious, Red Delicious e Jersey Mac. Se queremos penetrar no paradigma da maçã, temos de desenferrujar o inglês, que é praticamente a única língua que ela fala. O segredo, no entanto, não está em falar com ela, está em entender o que ela diz. Sabedoria oriental antiga e pura. Tentemos por isso ouvir o que nos pode este fruto dizer, já que em tanta coisa boa se converte e tanto a tantos apetece. Vamos de cereja em cereja, descemos um pouco na geografia e damos com outra variedade IGP, a Maçã de Portalegre. Ao contrário da denominação anterior, mais orientada para a suculência e generosidade volúmica da polpa, acompanhada de uma acidez que se destaca, esta é toda ela doçura e riqueza aromática. Trata-se da variedade Bravo de Esmolfe; em boa verdade, devíamos falar apenas de Bravo, porque essa é que é uma variedade – vem de natural, espontânea -, Esmolfe é outro assunto e já lá vamos. Tem pouco mais de um século esta maçanita que, deixando-se transformar pela ditosa e copiosa Serra de S. Mamede, ganhou estatuto pincareiro. É uma delícia e atingindo suculência daquela que escorre pelos cantos da boca, às vezes já se lhe chama... pêro. Agarra-se quando se passa pela fruteira ao entrar e ao sair de casa, e transpira saúde. “An apple a day keeps the doctor away”, é bem verdade. Talvez por isso se diga daquele que não há maleita que derrube que “é são como um pero”. É esta maçã também que se assemelha às bochechinhas das meninas sãs e casadoiras do campo, imortalizadas pelos nossos escritores românticos. A Bravo de Esmolfe DOP – a única com armas de origem protegida dentre todas as maçãs portuguesas – provém da aldeia beirã com o mesmo nome, junto a Penalva do Castelo e é pequenina, cabe na palma da mão. Amadurece em pleno lá para meados de Setembro, quando o Outono se instala. Utilizava-se para perfumar armários de roupa, gavetas de coisas de uso delicado e hoje caiu um pouco em desuso. Há registo de práticas deste tipo com mais de 300 anos, pelo que estamos perante uma variedade venerável. A cozinha portuguesa integra-a com facilidade, sempre que o receituário refere o produto maçã. Faz boa companhia a um frango assado e escolta bem, imagine-se, uma fatia de queijo Serra da Estrela. Parece bairrismo mas não é, até acentua, pela selva aromática que comporta, a afinidade deste tipo de queijo com os vinhos do Dão feitos com base na casta Encruzado. Com vinho tinto é para esquecer, nem pensar! É também esplêndida a Bravo de Esmolfe numa tarte, apesar da predominância actual da maçã reineta nos domínios da cozinha doce. Reineta que, diz-se, terá nascido ali para os lados de Janas, perto de Sintra. Mas isto, já se vê, é muito difícil tanto de provar como de contestar. Contradições, há muitas, como em tudo o que é verdadeiro. Faz, por exemplo, companhia aos grupos Golden, Gala, Red Delicious, Starking, Jonagold, Granny Smith e Jonared – cá está o inglês outra vez! - na composição do elenco da Maçã da Beira Alta IGP. A Granny Smith é aquela verdinha por fora, branca por dentro, que se usa, entre outros, nas provas de azeite, para neutralizar o palato. Impressionante, a multiformidade de vocações, é notável este assunto da maçã. Já a Golden é aquela maçã que é maçã, de pele amarelada e miolo branco. A Starking é vermelha, muitas vezes raiada e quase sempre farinhenta, quando se compra em supermercado.
Só da árvore é que se devia comer a maçã, para se lhe entender a génese e forma. A referência a Alcobaça é inevitável, neste aspecto, tal a extensão, beleza e qualidade dos seus pomares. Daí, seguramente, a referência Maçã de Alcobaça IGP. A diversidade de géneros que compõem a ficha é já quase um tratado em si mesmo. E todos eles estão normalmente disponíveis nos mercados. Aí vai mais inglês: Royal Gala, de grão muito fino na polpa, fortemente aromática, verdadeiramente multiusos; Delicious, esta a oferecer às vezes, evocações de ananás, com polpa bem alva; Jonagold, com sabor agridoce, é uma das mais saborosas da lusosfera; Fuji, quase neutra tanto no aroma como no sabor, tem no entanto a virtude de apresentar polpa de textura ligada e fresca, docinha como convém; Reineta Parda, que se diz ter herdado o seu nome por ser oferenda real, com a polpa acidulada que se lhe reconhece e utiliza muito na doçaria e confeitaria, assando e cozendo muito bem sem perder a estrutura nem as características base; e também a Casanova de Alcobaça, esta sim, reclamada por muitos como o verdadeiro “pêro”. O que será afinal isto do pêro? Miguel Esteves Cardoso, há muitos anos, escreveu um artigo no ido jornal Indepente no qual afirmava que o pêro era um dos grandes sinais da lusitanidade. E que “o verdadeiro pêro” era uma maçã pesadinha, sumarenta, que o português, encostado ao seu carro, explorava com a navalha que trazia no bolso, retalhando bocados e que, levados à boca, faziam escorrer sumo pelo queixo abaixo; puro prazer, portanto. A conversa do pêro é um pouco como a do míscaro, todos sabem o que é mas cada um tem a sua opinião quanto ao que é ao certo. Se as conversas são como as cerejas, estendia-se para aqui um cerejal infindo.

É grande a pêra-rocha

Se a maçã é uma espécie internacional, dada à terminologia anglo-saxónica, a pêra é francamente nossa, portuguesa de gema. Também as há noutros lugares do mundo, como é evidente. Basta recordar a William, que dá origem a licores e destilados clássicos. Quem nunca provou deve provar, um licor de Pêra William pode ser experiência inefável, a terminar uma refeição. Apesar de que é um pouco como o peixe comido fora de Portugal; não como a pêra portuguesa. Desde aquela pêra pequenina que no início do Verão se prontifica na pereira para ser arrancada, esfregada na camisa e comida no acto, até à pêra maior, sumarenta, que se nos oferece um pouco por todo o país, é uma fruta gloriosa. Aliás, quando uma tarefa no corre muito bem, com êxito, é ou não é uma “pêra doce”? A expressão vem de um hábito tradicional de deitar açúcar sobre a pêra cortada e descascada para a amaciar. Já “levar uma pêra” não é a coisa mais agradável do mundo... vicissitudes da vida e de alguns momentos menos bons.
A nossa grande pêra tem nome sólido e inspira fortaleza. É a Pêra Rocha, é DOP (Denominação de Origem Protegida), apanha-se em Agosto e tem lugar indefectível nos lares portugueses, nos seus diversos pontos de maturação. Consta que o seu nome se deve a um Pedro Rocha que no Séc. XIX cultivava em Sintra uma pêra muito boa. É granulosa, dá sumos muito bons quando bem madura e verde, cortada bem fininho, entra bem com pinhões numa saladas de rúcola. Nesta fase, a sua tez é ainda esverdeada, ao passo que com o avançar do amadurecimento ganha uma pele sardenta, pintalgada de castanho num fundo amarelo. Bêbada, leia-se marinada em vinho tinto e canela, é delícia portuguesa que consegue o pico do sabor e consistência, quando confrontada com preparações internacionais. Cá é que ela é boa. Também temos o nosso licor de Pêra Rocha do Oeste, com adeptos fervorosos e incondicionais. A caça, especialmente de penas, parece pedir pêra caramelizada em quase todas as receitas. Caça maior, como veado ou javali, também brilham se assessorados por uma mini-tarte de pêra rocha. Depois, há experiências interessantes para o quotidiano rápido de quem vive na cidade. Caso por exemplo, de um iogurte de pêra rocha; de uma sanduíche da dita cortada fino; ou simplesmente pêra cozida depois regada com mel.
Alcobaça, Bombarral, Cadaval, Caldas da Raínha, Lourinhã, Mafra e Torres Vedras produzem 75% da pêra rocha em Portugal, o que faz plena justiça ao qualificativo Oeste na sua denominação. Mas isso não fez acanhar outros países, seduzidos pela qualidade excelsa do nosso fruto. O Brasil adoptou-a como nenhuma outra nação, chamando-lhe, carinhosamente, Pêra Portuguesa. Assim é que se fala, mesmo quando a conversa é solta, como a das cerejas. Que é a dos pêros, das pêras e das maçãs.

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