Mais um ponto nevrálgico da gastronomia portuguesa
A costa atlântica de Portugal não passa despercebida a ninguém. Nalguns pontos de quase impossível penetração, noutros verdadeiro prodígio em época estival, a costa portuguesa criou e fez crescer um paraíso submerso no qual ainda temos muito para desbravar. A copiosa fatia do património gastronómico português de que falamos tem dois grandes magnetos na Figueira da Foz e na bacia confinada por Aveiro, Murtosa Ovar e Estarreja. Por essas paragens, souberam os deuses inspirar tanto os pescadores da costa como os muitos marinheiros que se foram para os longínquos mares da Terra Nova com sabores e receitas que felizmente ainda vivem, na sua essência. Corações iluminados ocupam-se de os tornar bem vivos nas suas interpretações. Estão nesta linha de forma matricial os pratos que Isabel (Bebé) oferece diariamente no seu Carrossel, sugestivamente instalado junto à praia de Cova, em Gala, povoado piscatório que bordeja a Figueira da Foz. Lá estão à nossa espera, por exemplo, a Raia de Pitau, um pitéu secular que tem alquimia assente na fusão dos fígados da dita com temperos simples como o colorau e fundo imaculado como a cebola e o alho. Também está a Chora, sopa de bordo outrora produzida pelos pescadores para aproveitar as cabeças, ou caras, de bacalhau e que, acabando-se depressa, fazia chorar por mais. Isabel fá-la hoje com línguas de bacalhau. Os Samos (ou sames), também de bacalhau, aproveitamento genial da barbatana bexigueira do fiel amigo. Feijoadas, massas, arrozes – existirá melhor arroz em Portugal que o do Baixo Mondego? -, com peixes e processamentos diversos. Local referencial, pois, para iniciar a leitura atlântica de Portugal, sabiamente traduzida para a modernidade pela proprietária do Carrossel.
Do mar passamos para a Ria, onde fixamos e reconhecemos a capital da enguia. Adriano Ferreira é da Mealhada e foi o amor que o levou para a Costa Nova, terra natal da sua mulher. Juntos fizeram há duas década o Praia do Tubarão, onde revemos as caldeiradas e os ensopados feitos quase como dantes. Dizemos quase, porque – felizmente - na cozinha tudo está em constante mutação e o nosso sabor também. Quando ali comemos, ganhamos a certeza estar a provar o ensopado de peixe por que os antigos suspiravam, tal a definição e profundidade dos sabores. Boa oportunidade de revisão de conhecimentos para quem, obtusa e obstinadamente insiste em classificar pejorativamente esta cozinha como “a mesma de sempre”. As enguias fritas são petisco inefável e o escabeche das mesmas inscreve adjectivos favoráveis na memória mesmo para quem os escabeches são só coisa ácida.
Por estas latitudes em que nos encontramos, mais para dentro da terra firme, grassa uma outra grande iguaria nacional, emblema digno de bandeira na Beira Litoral. É o Leitão à Bairrada. Diz-se que qualquer escolha é por definição injusta, mas no caso do bacorinho bairradino isso não se aplica. Corre na família de José Vidal Ferreira, um sangue sabedor e profundo conhecedor da proteína. Os que não conhecem o Vidal, em Aguada de Cima, só esses poderão dizer que há melhor. Ou quem conhece Vidal Agostinho Silva Ferreira, um dos filhos de José Vidal, que em S. Martinho se dedica há uns anos só à assadura do leitão. Tem a quem sair na fibra e paixão pela perfeição. Do cruzamento da raça bízara com o porco local saem exemplares perfeitos que nos fornos de lenha desenvolvidos e construídos por si próprio ganham alquimicamente estatuto real. A sua filha Mariana Vidal já está arregimentada e pronta para secundar o pai, terminados que estão os seus estudos de cozinha na escola hoteleira de Coimbra. Vamos ver se nasce ali um restaurante ou se continuamos alegremente a encomendar e ir buscar o melhor leitão do país. Qualquer opção que a família faça, para nós está bem feita.
Descemos por terra até Leiria para dar com o restaurante Casinha Velha, de Ricardo Costa. Prosseguimos a toada carnívora, com títulos exemplarmente executados. Sem discutir a proveniência do bicho, provamos um grande cabrito assado, daqueles em que a simplicidade é praticamente o único segredo. Assinatura, afinal, de toda a cozinha tradicional portuguesa. Assado brilhante é também o do galo, seguido de perto pelo arroz de pato desfiado que no Cozinha Velha se serve com frutos.
Deixamos para o final a que consideramos uma das grandes glórias da cozinha regional do país. Tem nome de conto efabulado, ao mesmo tempo que nos chama a todos para a sua extraordinária família. É o Tia Alice, em Fátima. Nos olhos claros e ternurentos de Alice Marto, fundadora e ainda oficiante cozinheira, conseguimos ver a essência e origem do prazer que nos dá o que nos põe na mesa. O calor do seu coração gerou uma família de grande talento e união, ao mesmo tempo que criou na sua filha Lúcia um sentido ascensional de realização que é, só por si, um desafio para quem ali se restaura. Duas figuras muito especiais, dínamos imparáveis de trabalho e criação, cujo campo magnético tem braços felizes nos irmãos e cunhada que animam a melhor coreografia de sala que conhecemos. Conferimos o arroz de peixe, regressamos à Chanfana, e entramos gulosos e vorazes pela Açorda de Camarão e pela Vitela Assada adentro, para reconhecer que, de facto, a grande tradição culinária portuguesa ainda vive na casa e no coração das pessoas.
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