domingo, 22 de janeiro de 2017

Vicente, quantos és?


No dia de s. Vicente...

Começo com a confissão de uma ambição totalmente banal. Ainda não desisti de ter uma iluminação súbita a olhar para os painéis de S. Vicente, serenamente expostos no Museu Nacional de Arte Antiga, e ser-me concedido ver uma qualquer coisa que não fazendo falta nunca ninguém tenha visto. Fiz um trabalho incompleto e superficial sobre "o olhar nos painéis de s. vicente" parar uma cadeira que nem sequer era minha e andei bastante excitado com as simetrias verticais e o espaço tridimensional que as trajectórias dos diferentes olhares geravam. O trabalho teve a nota máxima da parte escrita, o resto teria de ser discutido na oral, que não calhou bem porque a pessoa em causa não sabia identificar os capiteis jónico, dórico e coríntio, esqueceu-se de estudar "essa parte". Hoje sei que não merecia nota alguma, não passava de uma ponte possível, um divertimento inconsequente com espaços compactos e mapeamento conforme; qualquer coisa que ainda me ocupou duas ou três janelas da vida em anos seguintes. Mas nunca mais me livrei de lucubrar e inventar sempre que me espreitei os painéis. Tenho a certeza de que ninguém está à espera de mim para avançar no conhecimento do difícil e misterioso políptico, pelo que é sem qualquer sentimento de culpa que me entrego, diletante, ao que me surge. E constato que foi a minha insistência geométrica que sempre me impediu de olhar para factos, números e datas que sempre ali estiveram. Dei com mais uma coincidência talvez cósmica, que a muitos pouco dirá mas que em mim bate fundo. Em 1445, é a data consensual e estabelecida para a conclusão dos painéis que tiveram na Sé de Lisboa a primeira morada, a certa altura terão sido passados para igreja de S. Vicente de Fora, desaparecendo depois. Fiquei surpreendido por terem sido redescobertos no ano de 1882, o ano em que Wagner estreia Parsifal no Festival de Bayreuth. Acontecimentos totalmente descorrelacionados? Talvez, mas o tempo é também uma dimensão e é possível ver de repente uma estrutura maior a partir de uma nova base. Passa a nada ou tudo, nivelando com o conhecimento histórico. Parsifal foi um dos cavaleiros da Távola Redonda, os puros demandantes do Graal e logo no final do primeiro acto, o dito Graal é mostrado ao jovem Parsifal - cuja matriz etimológica podia significar "tonto puro" - num contexto mágico e sublime, em termos musicais; certamente uma das mais belas páginas da história da música, a da transformação. Monsalvat, o lugar onde eles se encontram, é onde, segundo Gurnemanz, um dos reis eméritos do Graal, "o tempo se transforma em espaço" (a força da memória simbólica) sempre que a invocação é feita pelos cavaleiros de coração puro. Parsifal é convidado a ficar para assistir; Amfortas, o rei dos cavaleiros do Graal, moribundo por se ter deixado ferir pela própria espada, havia tido uma visão de que tudo se poderia salvar no dia em que o "tonto puro, movido pela compaixão", o resgatasse. No final da cerimónia, de pura e intensa magia, Parsifal confessa que não percebeu nada, pelo que pode e vai ser o herói da história.
Em Ravello, não longe de Pompeia ergue-se lá em cima um promontório maravilhoso sobre o Mediterrâneo, mostrando, entre outros, que é um imenso mar e não o pequeno lago onde espero que por abuso de linguagem se considera haver hoje uma só "dieta" e uma só gastronomia. Lá de cima, olhamos para sul e sabemos que está o Egipto, viramo-nos para nascente e sabemos estar o Líbano. A poente está, depois de Gibraltar - que quase toca o Norte de África -, o Atlântico. Tudo menos simples, reduzir a uma "coisa" só. Até à destruição horrível pelo vulcão Vesúvio em fúria, Pompeia era a capital do vinho e da vinha, considerado excepcional e vendido a peso de ouro para toda a parte. Caro, mas muito bom. A Campania - língua costeira que abraça Nápoles e a costa amalfitana e que inclui Sorrento, Positano, Ravello, todos esses lugares mágicos -, do tempo do Império arrasaria hoje, em comparação, Bordéus e Borgonha juntas, em qualidade e valor. Wagner passava férias e temporadas longas em Ravello, em casa de um amigo, lá nos cocurutos. Chamava "jardins de Klingsor" àquela maravilha. Klingsor, a propósito, é no Parsifal um candidato que falhou a admissão junto do corpo dos cavaleiros porque se castrou a si próprio, o que retira o valor à virtude da castidade. Dedicou-se à magia a partir daí e criou figuras femininas disfarçadas de flores à volta de Monsalvat, para seduzir os cavaleiros. Foi assim que conseguiu que o próprio rei se detivesse numa mulher linda, aproveitando para lhe roubar a espada e feri-lo com ela. Quem for a Ravello, como eu fui e visitar esta casa prodigiosa vai perceber tudo. A Campania vínica era há apenas 2 mil anos a capital da vinha e do vinho do mundo inteiro que não sendo comprovadamente ainda redondo, era já muito grande, estendido ao limite pelos romanos. Se o vinho foi, e tudo indica que sim, trazido pelos gregos para Itália, foram os fenícios que deram o primeiro grande impulso à cultura da vinha e os romanos quem a sistematizaram. Onde e como tudo começou é impossível dizer. Até em Portugal temos castas autóctones que sobreviveram nas vinhas dormentes do período pré-glaciar! Muito de facto por descobrir. É absolutamente central a cultura do vinho para entender as gastronomias mediterrânicas.
Parece que foi Mago, especialista cartaginês, quem escreveu o mais importante manual de viticultura, cerca do Séc. II a.C., traduzido para latim e grego para ser adoptado por todos os que visavam estabelecer-se como produtores de vinho. Cerca de 170 anos antes da era Cristã, foi o tempo em que os romanos, além de copiar a traça das casas senhoriais gregas, aglutinaram terras e passaram a concentrar-se em cidades, com Roma à cabeça. Grassaram as padarias e as pessoas começaram a comer pão; até aí, comia-se papas de cereais ou fazia-se o pão em casa, mas no campo; a "pólis" puxava pela concentração de recursos e por um certo mundo moderno. A conselho do tal Mago, começou a substituir-se o reticulado de pequenas vinhas por outras, em extensão e colocadas nos melhores locais, em termos de solo e clima; o que hoje, afinal, conhecemos como terroir. Estávamos na alvorada do conceito de "grand cru".
Confesso que tenho uma enorme curiosidade em saber como era, a que sabia e a que cheirava o vinho da última ceia de Cristo com os apóstolos. Que vinho enchia os cálices da gloriosa Pompeia. Com que celebravam esses primeiros do vinho? Há pistas muito concretas que nos dão bons indícios. Bebidos nos "kalyx-krater" gregos, feitos em terracota e primorosamente decorados, o vinho de então e o vinho dos nossos tempos, em comum só tinham mesmo o nome. Os gregos misturavam água do mar ou água com especiarias maceradas previamente no vinho antes de o beber, diluindo-o. Lê-se no livro "Oxford Companion to Wine que o grau alcoólico do preparado desse tempo era entre 3% e 6%. Duas partes ou apenas uma de vinho para três de água do mar. Como é evidente, o costume foi adoptado por Roma e era o anfitrião que decidia que diluição dar ao vinho antes de o servir. Os celtas e os gauleses bebiam o vinho puro - como nós! - e por isso eram considerados selvagens, sem maneiras. Dava tudo para ser mosca e viajar no tempo para assistir a uma dessas festas, ou sentar-me à mesa com um grupo e observar bem as coisas do vinho. É mais que certo, pelo que disse, que no tempo dos romanos não havia vinho tinto. Mas havia vinhas de grande qualidade, de uvas tintas. Difícil de aceitar, mas a vida tem mesmo coisas assim. No tempo do império de Augusto, que durou cerca de 300 anos, até 14 d.C., Itália já tinha vinhas plantadas e em produção de grandes vinhos. Exportava para a Grécia - pormenor que não deixa de ser curioso - e para a Macedónia, mas cedo começou a exportar para o mundo inteiro. O maior mercado, contudo, era Roma. Havia, mesmo assim, um certo complexo de inferioridade entre os romanos, para quem os vinhos gregos eram melhores que os seus. Gregos que por regra faziam a vindima com os cachos sem o amadurecimento completo, que depois punham ao sol para secar e concentrar os açúcares. Os romanos adoravam tudo o que era doce. Entre Roma e Pompeia, na já citada Campania, era onde Itália tinha os melhores vinhos e também os mais caros. Tudo parecia definido de forma estável, até que em 79 d.C. o impensável acontece: o Vesúvio entra em erupção violenta, sacudindo e matando tudo e todos. O negócio não podia parar e as movimentações para plantar vinha noutras paragens, incluindo no lado de lá do Mediterrâneo. É o momento de ouro da península ibérica, em que chega à ribalta Lucius Columella, génio de Cádiz, especialista em vinha, que no seu tratado "De Re Rustica" estabelece praticamente tudo o que ainda hoje praticamos. Publicado no ano 65 d.C., imagine-se. Foi aí que os romanos foram beber conhecimento, fundindo-o habilmente com os seus costumes e hábitos. Já sabiam o que queriam. Vinhos essencialmente de colheita tardia - obsessão pelo doce, já referida -, quando não o levavam a ferver, para evaporar parte da água, ou lhe juntavam mesmo mel, assumindo a fixação pela gostosura doceira. Plínio e o grande Apícius juntam-se a Columella para formar o trio que há que estudar com afinco para se entender bem as bases mediterrânicas das diversas cozinhas que criou. Galeno, médico grego especialista em antídotos de veneno, talvez por isso mesmo médico pessoal do imperador Marco Aurélio, construiu todo um receituário à base de vinhos e ervas e - imagine-se! - advogava os vinhos brancos secos. A sua lista de grandes vinhos era 100% constituída por vinhos brancos. O tinto era para as tabernas, dizia.
Será sempre um desafio perceber a dualidade dos romanos quanto à comida e os prazeres da mesa, mas foram na história e gente mais obcecada com os frutos, ervas aromáticas, cozeduras e frescura de todos os ingredientes, além de desenvolver receituário que inclui molhos, marinadas, compotas e mesmo sobremesas. É preciso notar que não havia ainda açúcar, como hoje conhecemos. Em total oposição a este paraíso estão a orgias, as festas romanas, em que se cultivava o excesso. E no entanto, olhemos para as nossas mesas num dia normal, em família, ou num dia festivo. Toda a cozinha tradicional portuguesa é uma cozinha de festa, em que queremos todos à mesa. A palavra "comer" tem um duplo significado. Vem de "cum erere" e também do latim "comer". Esta última é a raiz por exemplo da palavra comércio, que quer dizer "fazer alguma coisa com alguém", enquanto a segunda é um reforço da mensagem de "comer com alguém". A mesa é para os portugueses um espaço de partilha, no qual tudo é para partilhar. "Erere" quer dizer alimentar-se.
Nasce no Séc. III na aragonesa cidade de Saragoça, Vicente. Terra de vinhas temporãs, em que as uvas cresciam mais cedo - Tempranillo quer dizer exactamente isso - já os fenícios e os romanos conheciam bem os seus solos e, ciosos como eram, deviam ali ter montado sede vitivinícola; mais uma. Foi viver para Valência onde conheceu um fim mais que temporão, mesmo assim envolvido numa névoa prodigiosa, num corpo que havia de dar à costa no Algarve, reza a lenda que protegido por um corvo, impedindo os abutres de se aproximar. Foi no Cabo de São Vicente que conheceu finalmente sepultura, aí sendo erguida a primeira igreja da sua dedicação.
Para nós S. Vicente é o padroeiro dos navegantes, por razões óbvias, mas em França é o padroeiro dos vignerons. A palavra Vincent pode ser decomposta para "vin+sang", evocando a transformação de vinho em sangue da eucaristia católica. O dia que lhe calhou no calendário litúrgico - 22 de Janeiro - nada tem a ver, contudo, com vindima nem vinho, em termos populares. Tem a ver, e muito, com o tempo da poda da vinha e é aí que está a essência de Vicente, o santo. Estar na génese de todas as coisas, no princípio de tudo. E na protecção contra as geadas e nevoeiros. Saint Vincente, notre patron. / Protégez nos bourgeons / Des brouillards et des glaçons.
Foi no cálice a transformação que foi dada a ver a Parsifal, tinha sido no Kalyx que os primeiros gregos pressentiram a perfeição. Sempre que elevarmos um copo, levemo-lo ao coração, como faziam os Cavaleiros, e depois estendamo-lo em direcção ao outro. Que tudo isto podia nem sequer ter existido.


(Publicado na revista Vicente, Projecto Travessa da Ermida)

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