domingo, 13 de março de 2016

Inimigos naturais do vinho

São muito simples, mas são também dor de cabeça para os cozinheiros. Mesmo os mais experientes tropeçam neles, para conseguir contornar de forma eficaz a adversidade de os harmonizar com vinho. Mas quanto mais difícil é, mais apetece aceitar o repto. Coisas de humanos.

A glória de uma conversa de café resolve tudo, até os problemas mais complexos do mundo. Mas quando chega a hora de harmonizar pratos baseados com vinho, não podemos falhar. E contudo, há ingredientes que nunca se mostrarão simpáticos, terão sempre uma palavra a dizer e mais uma volta a dar. Elenco de seguida oito desses “impossíveis”, com a porta aberta para a experiência e o inteiramente novo.

Inimigo #1: Alcachofras
Desfolhar uma alcachofra cozida ao vapor e levar uma pétala de cada vez à boca depois de a passar por manteiga quente e limão dá-me tanto prazer que não consigo explicar. Assim como não lhe dar esse tratamento me parece Um total desperdício de uma coisa fantástica, iguaria de deuses. Fica banal e áspera no fim de boca, com uma sensação intensa de amargo que ecoa nas brumas de antes da idade do juízo. É capaz de ser por isso que tudo o que se come ou bebe a seguir parece mais doce do que na verdade é. O composto responsável por este efeito é a cinarina, um dos muitos adoçantes disponíveis na natureza, justamente por este efeito positivo-negativo que gera no palato. O vinho fica arruinado e feito bebida profundamente desinteressante, branco ou tinto, com ou sem madeira. Aliás, quanto mais alcoólico e tânico for o vinho, pior o resultado, à semelhança da imagem reflectida num espelho; os extremos tocam-se. A manteiga é gorda e salgada, o limão acrescenta acidez, é por isso que as coisas correm bem na minha forma preferida de comer uma alcachofra. Mas a planta permite preparações e cozinhados maravilhosos, e desde que se escolha bem o vinho, há casamento à vista. Um vinho branco velho - mais de 5 anos - consegue dar conta do recado e até brilhar, assim como um xerez - fino ou manzanilla -, especialmente em saladas.

Inimigo #2: Espargos
Enquanto as alcachofras tornam qualquer bom vinho numa bebida pouco interessante e adocicado, os espargos provocam uma alteração no sentido oposto, fica tudo mais “verde”, no sentido de vegetal e herbáceo, retirando quase tudo o que de confortável a agradável caracteriza o vinho. Isso deve-se à presença da metionina, um aminoácido rico em enxofre que cerra fileiras contra as coisas boas da mesa. O vinho tinto estagiado em madeira leva ordem imediata de expulsão, de forma mais gritante que no caso do marisco e um bom vinho branco tem a vida muito dificultada. Há a ter em conta a natureza amarga e herbácea dos próprios espargos, razão pela qual recorremos a um “dip”, um molho ou um creme onde passamos os espargos antes de os levar à boca. A maionese é a mais frequente e consegue criar pontes com o vinho. Não há como um Sauvignon Blanc para completar a ligação. A segunda pista para harmonização é fugir de perfis taninosos e madeira na hora de escolher o vinho. Riesling e arinto podem dar resultados interessantes.

Inimigo #3: Laranja
É talvez um abuso de linguagem dizer que a laranja é inimiga do vinho, mas grande amiga também não é. Está em causa uma capacidade de destruição do palato acima da média e requer assessoria paliativa cuidada. Estou a falar do fruto propriamente dito, e não da integração do seu sumo em molhos, temperos ou marinadas. Sempre me intrigou por que um uma peça de fruta de aceitação universal tinha na sua forma standard tal capacidade de desgraçar um vinho que me estava a dar prazer beber. A laranja e o vinho têm ambos ácido e doce na composição, com grande variabilidade nas ligações. Um vinho mais rico em polifenóis - caso do tinto - pode amargar, enquanto um licoroso pode de repente mostrar-se áspero e anguloso na boca. Quando ligada com chocolate, a laranja fica universal, e um vinagrete com ervas e laranja, a temperar um peixe grelhado pode fazê-lo ligar com um tinto ligeiro. Para não falar dos clássicos da cozinha, como pato com laranja, que ligam na perfeição com tintos sem madeira. Em salada, até ver, a única saída segura é o espumante, enquanto que bolos húmidos ou sobremesas com laranja casam bem com moscatéis novos ou colheitas tardias.

Inimigo #4: Nabo
A raiz de nabo é o que normalmente se inclui no cozido à portuguesa e, se divide as pessoas, os vinhos ainda mais. Constato que é ingrediente que a maioria dispensa no seu prato, mesmo aqueles mais afoitos nas coisas da tradição e do que se diz ser de sempre. Nabo é adstringente, amargo e nem no azeite pega. Entramos aqui na complexa zona da harmonização de vinhos com legumes, a um tempo complexa e recheada de excepções. Porque têm fibras, proteínas e açúcar, em porções variáveis. A raiz de nabo cozida é de muito difícil resolução, fica pouco espaço para mais do que um vinho branco simples e sem madeira. O mesmo não se pode dizer da variante salteada, que faz toda a diferença. Partir do nabo cru com um fundo de caldo na frigideira, juntar mostarda e mel de acácia, e no final pimenta preta transforma o legume em coisa vibrante, amiga por exemplo de Pinot Noir. Há que procurar e ajustar cozeduras e reduções até encontrar o ponto.

Inimigo #5: Beterraba
Tem açúcar e é amargo como a morte, o que é aparentemente paradoxal. Deve haver poucos alimentos com mais tonalidades terra do que a beterraba. Absolutamente impenetrável quando crua, pode tornar-se insuportável a partir de um certo ponto de cozedura. Pelo caminho, inúmeras tentativas goradas de harmonização com vinho. A riqueza de sabor e a intensidade no palato esmaga normalmente o vinho, aniquilando toda e qualquer complexidade ou interesse que pudesse ter. Para cúmulo, é um ingrediente estrela entre os criadores culinários da actualidade, parangona da sustentabilidade e riqueza nutritiva, pelo que tão cedo não vai desaparecer dos cozinhas. Para cúmulo também, têm saído bem as experiências com os vinhos de Colares, quanto mais velhos melhor. O Ramisco consegue entrar na massa de trufa preta e terra húmida da beterraba, criando uma plataforma equilibrada. Os Encruzados do Dão, talvez pelos granitos velhos onde normalmente existem, com as suas notas salgadas, mostram-se capazes de integrar e cortar a beterraba em diferentes pontos de cozedura.

Inimigo #6: Vinagre
Vinho e vinagre, basta atentar no acre do segundo para se perceber que se trata de coisa amarga, azeda, repelente. O preconceito fez e faz com que o vinagre não conseguisse alcançar o lugar devido à mesa e no entanto sem ele não havia escabeche; tempero; marinada; conserva; e tantas outras coisas. Fixo-me no escabeche, pelo quanto em tantos restaurantes veda o acesso ao bom vinho por não ser equilibrado. Vive aqui um mito que é preciso matar, um escabeche só é bom se for equilibrado. É que se um prato não for equilibrado, dificilmente a ponte com vinho terá sucesso. A utilização errada do vinagre balsâmico é outro factor a ter em conta, pelo conteúdo de sabor mais adocicado que apresenta.

Inimigo #7: Pepino
Estamos na presença de um legume notável, que sozinho representa saciedade e frescura. O que sempre se utilizou em Portugal tem sementes pronunciadas e uma casca dura que para efeitos de digeribilidade deve ser quase toda eliminada. O pepino que se utiliza no sushi é um outro, mais massudo e menos sumarento, além de praticamente não ter sementes. O nosso é um pandemónio para aceitar o vinho como companheiro estável, enquanto o “japonês” apresenta as coisas bastante mais facilitadas. Alvarinho, Loureiro e Fernão Pires conseguem entrar neste tipo de pepino, enquanto que o tradicional exige preparação, marinada ou molho. Impossível não recordar a salada tépida de pepino e crème fraiche que se servia no ido Amadeus, em Almancil. A maceração e cozedura muito lenta torna-o universal, até um tinto ligeiro entra bem. A ligação mais forte é um branco com madeira.


Inimigo #8: Gema crua
O ovo de galinha tem albumina na clara, rica em antioxidantes, e gema, muito rica em ferro. O negócio com o vinho passa sobretudo pela gema, pelo quanto destrói a estrutura de um vinho quando está mais encruada que cozida. Um espumante ou um kirsch royal podem conseguir entrar, graças à efervescência da bebida bem como sua à acidez fixa elevada. Falo por exemplo dos célebres “ovos benedict”, mas aplica-se também ao pudim de ovos, ricos em gemas, como se sabe, com a diferença da presença de açúcar em ponto estrada ou espadana, além da produção de caramelo. Abre caminho para o vinho Madeira, mas não todo, ou para o moscatel de Setúbal. Doçaria conventual e caseira pedem que se pense nelas mas não facilitam muito o caminho. Há que persistir.

Só custa começar, o segredo é ir anotando as experiências e seguir caminho, com novas tentativas. Quanto mais conseguirmos sistematizar, mas flexibilidade ganhamos, aplicando o conhecimento adquirido noutras abordagens. Boas provas!

(Revista de Vinhos Mar'16)

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