(Entrevista feita em Julho de 2008)
Parafraseando Pierre Andrieu, crítico gastronómico francês da primeira metade do séc. XX e colaborador do conceituado Curnonsky, José Quitério chamou-lhe “uma das cada vez mais raras Guardiãs do Fogo”, na sua obra “Histórias e Curiosidades Gastronómicas” (Assírio e Alvim, 1992), a propósito da condecoração com que a cidade de Lisboa a distingiu. Maria de Lourdes Modesto é uma referência incontornável da nossa cozinha. Foi pioneira do “live cooking”, nos tempos em que a televisão se fazia totalmente em directo. Escreveu livros que ainda hoje fazem parte do “programa mínimo” de quem se interessa pela cozinha portuguesa. A sua influência continua grande junto de profissionais e consumidores, pela forma carismática como fala e pela clareza do seu discurso, escrito ou falado.
Foram escassos 12 anos, entre 1958 e 1970, aqueles em que pudemos contar com os seus programas televisivos, mas nenhum outro até hoje teve mais sucesso do que o seu. Alentejana de gema e amante da cozinha da sua região, olhou sempre de forma desassombrada para Portugal inteiro tanto na sua unidade como na diversidade gastronómica, nunca se cansando de a proclamar. Já na técnica culinária, tomada no sentido estrito do termo, viu desde cedo em França a excelência necessária para trabalhar seja que cozinha for, incluindo a portuguesa.
Como começou a trabalhar em gastronomia?
Eu gosto de dizer que foi a pouco e pouco que fui começando. Mas tudo começou quando uma equipa da RTP foi ao Liceu Francês em Lisboa, onde eu era professora de trabalhos manuais. Tinha um papel numa peça de Molière e ficaram impressionados comigo, o que os levou a convidar-me para fazer um programa cultural. Disse-lhes que não, mas que podia fazer qualquer coisa virada para as mulheres.
E cozinhou?
De certa forma sim, mas não consigo explicar porquê, que não fosse pela minha simpatia pelos costumes da mesa dos franceses. A intenção era fazer arranjos de flores, mas achei que para um primeiro programa teria piada mostrar por exemplo como cozinhar e comer alcachofras!
E foi um êxito…
Excedeu todas as expectativas. Temos de ver que isto se passa em 1958, quando os atrevimentos e improvisos eram tudo menos bem vindos! Foi logo ali que me disseram que eu não ia fazer o programa previsto mas que ia, sim, passar a cozinhar na televisão. Que foi o que fiz até 1970.
Sempre em directo?
Só gostei dos programas em directo. Quando comecei com os programas gravados, entrei numa enorme depressão. Em directo, eu tinha a noção de estar a falar com as pessoas, ao passo que na forma gravada era tudo muito impessoal, além de que se faziam vários programas em série, como numa indústria. A Filipa Vacondeus chegou a dizer-me que tinha gravado 7 programas no mesmo dia! Eu uma vez gravei três, o que foi uma experiência muito violenta.
Foi assim que conheceu e convidou grandes chefes, gourmets e empresários.
É verdade, passou muita gente pelo meu programa, que animava com o maior gosto. No princípio, os chefes que eu convidava eram quase todos franceses e nas conversas com eles, especialmente fora da emissão, dava-me conta de quão sério era o assunto da cozinha francesa. Se os souflés levavam ou não um pingo; se o coq au vin de uma certa região de França era ou não melhor que o de outra. Percebi que a cozinha francesa era, de facto, um assunto cultural. E interessei-me muito por ele.
Entregou-se então ao estudo da cozinha francesa.
O ambiente era-me favorável a isso. A mulher de um professor do Liceu Francês tinha estudado técnica culinária em França e eu comecei também a estudar. Mais tarde, fui fazer um estágio sobre literatura francesa a Paris, onde aconteceu algo insólito. Conheci muitas pessoas ligadas à cultura e restauração, que me convidavam para várias saídas, supostamente por conselho de portugueses mas que eu não conhecia. Eram, nem mais nem menos pessoas da Fima/Lever, detentora da marca Vaqueiro, para quem passei a trabalhar.
Mais uma estreia profissional?
Sim, que viria a durar muitos anos. Havia na altura duas margarinas concorrentes: a Chefe e a Vaqueiro. A Chefe costumava fazer uma promoção no Natal, em que oferecia a margarina para fazer os bolos para os mais carenciados. Na Vaqueiro, desenvolvemos um livrinho com receitas desenvolvidas por mim que as pessoas podiam trocar contra a apresentação de um certo número de embalagens de margarina. Tinha pratos mais sofisticados, inspirados na cozinha francesa, tais como, por exemplo, linguado com Vinho do Porto. O êxito foi retumbante!
Esses livrinhos fizeram escola, porque houve várias iniciativas semelhantes depois disso.
Nasceu pouco tempo mais tarde a Tele-Culinária, com o Chefe Silva, que acabou por com eles potenciar muito o seu sucesso financeiro. Soube explorar o nicho criado como ninguém. A revista ainda hoje se publica, com tiragens significativas.
Mas também escreveu os seus próprios livros.
Por convite de Fernando Guedes, entrei para a editora Verbo, onde desenvolvi um trabalho muito interessante, tanto de estudo e sistematização da cozinha tradicional portuguesa, como de compilação de receituário tradicional e familiar.
Qual é o seu livro favorito? Cozinha Tradicional Portuguesa?
Eu considero que esse livro não é meu, é de todos nós. É o resultado da colaboração de muitas e notáveis pessoas. Design notável e fotografias fantásticas de Augusto Cabrita, sem esquecer o empenho notável do meu editor. Este livro [pega n’”As Receitas Escolhidas”] sim, é um livro bem feitinho, de que gosto muito. Fácil de utilizar e muito conciso, como eu gosto.
COZINHA PORTUGUESA, O ESTADO ACTUAL
Como vê a cozinha portuguesa e a sua propagação pelo mundo fora?
Eu tenho uma paixão pela cozinha portuguesa, isso é bem conhecido e a minha vida foi-lhe muito dedicada. Mas não sou, de forma alguma, reaccionária. Aceito a modernidade e tenho de aceitar a evolução. Quanto ao facto de ela ser conhecida no exterior, eu penso que a nossa cozinha é muito apreciada em Portugal pelo turista que nos visita. Mas quando chegam as oportunidades de mostrar a cozinha portuguesa, esse desiderato já não se cumpre, o que é pena! Outras cozinhas, são mais feliz nas suas iniciativas.
Alguns chefes portugueses têm feito bastante pelo gosto português
Não é o que eu tenho visto! Não é o gosto português que eu tenho encontrado na maioria das novas criações. É certo que se deu uma revolução gastronómica em Portugal, mas há que aprofundar um pouco mais e estudar mais. Além disso, tem-se abusado do título de “chefe”. Hoje, parece estar ao alcance de qualquer pessoa com alguma experiência de cozinha profissional.
O que define para si um chefe?
Para mim, um chefe é uma pessoa diferenciada, alguém que na cozinha representa a autoridade. Aquilo que eu conheci na cozinha do Hotel Aviz, há várias décadas, foi notável. Só pelo tamanho dos chapéus, sabíamos quem era o chefe, quem era o segundo, o guarde-manger, o pasteleiro, o commis, etc. Hoje em dia, muitas vezes o chefe nem sequer está na cozinha.
Mas não é isso que explica que o gosto não seja português…
Acaba por explicar, pela preocupação com o que os outros estão a fazer e por alguma falta de concentração no seu trabalho. Os ingredientes são trabalhados de uma maneira que não é a nossa, utilizando técnicas que não têm a ver connosco. A cozinha portuguesa tem uma determinada matriz que esse tipo de cozinha não pode ter. Há um grupo de chefes que está a cozinhar para o mundo, com todos os riscos que isso acarreta.
E podemos fazer as coisas bem feitas, evoluindo?
Com certeza! Mesmo com técnicas modernas, podemos continuar a honrar e preservar o gosto português. A cozinha é ela própria resultado de uma evolução. Mas uma evolução que se foi dando gradualmente. Assistimos hoje, de certa forma, a um movimento que parece ter vontade de cortar com o passado. Outras vezes, não passa das intenções. A razão principal, é os novos chefes lerem e cultivar-se pouco.
Qual deve ser o programa mínimo para a formação de um jovem chefe?
O aspirante a chefe deve ler tudo e nunca se deve dar por satisfeito na sua formação teórica e técnica. É fundamental ter umas boas bases. Saber, por exemplo, o que é uma emulsão estável e o que é uma emulsão não estável, com detalhe e rigor, e experimentar muito. Isto em todas as áreas do conhecimento culinário.
Fausto Airoldi tem puxado bastante pelo aspecto da formação dos chefes.
Muito oportuna a referência a Fausto Airoldi, porque ele tem feito uma obra absolutamente notável na Associação de Cozinheiros Profissionais de Portugal. Devo dizer que fiquei abismada quando visitei [Rua de Santana à Lapa 71-C]. Aquilo é que é de facto formação contínua. Não conheço suficientemente a cozinha do Fausto Airoldi para falar sobre ela, mas o que ele fez pelos cozinheiros português já faz dele uma pessoa a quem muito Portugal deve. Eu já fui condecorada e o Fausto ainda não, mas sem dúvida que devia ser!!! Ele é homem de poucas palavras, fala muito pouco, mas faz muito, o que já vai sendo raro em Portugal.
Estamos a valorizar o nosso património gastronómico? A inovar?
De forma geral, acredito que sim, apesar de alguns aspectos que me preocupam muito. Não devemos ter medo da inovação, mas “desestruturações” ou “desconstruções” são caminhos que não correspondem ao que eu gostava de ver acontecer com a nossa cozinha.
O “à Brás” foi promovido por alguns chefes a técnica culinária, vendo-se hoje aplicada a legumes, por exemplo.
Quando se aplica ao Bacalhau à Brás, faz todo o sentido, já que se refere a uma receita. Mas quando se utiliza para designar outras preparações, parece-me errado e sinal de alguma falta de imaginação!
Inovar implica desafiar as regras estabelecidas…
Isso é verdade e é positivo que haja quem esteja a apostar na inovação. O importante é que isso seja feito de forma a recuperar e encontrar o sabor português. Houve uma pessoa que passou cá por Portugal e que conseguiu fazer um trabalho notável nesse sentido, que foi o Joaquim Figueiredo.
A quem muitos se seguiram.
Sim, mas muito poucos tinham a bagagem dele. Escola francesa de alta cozinha, grande preparação técnica e muito talento. Mas, como ele era muito novo e conseguiu fazer o que fez, instalou-se a ideia de que se conseguia facilmente chegar ao nível dele.
A cozinha francesa ainda é matricial?
Eu penso que sim. Um pouco à semelhança da relação que existe entre o alfabeto e a língua, assim se relaciona a cozinha francesa com as cozinhas de todo o mundo. Está na base de todas elas.
Qual é o chefe português de referência, para si?
O Chefe João Ribeiro, do Hotel Aviz, foi a única pessoa a quem eu chamei Mestre. Tinha duas características determinantes: uma grande dedicação à sua profissão e uma extrema humildade. Sendo um homem de enorme talento, estava sempre disposto a aceitar conselhos e indicações da direcção do Hotel Aviz, mesmo quando estava na televisão ao meu lado! Um exemplo humano realmente notável.
Diz-se que a humildade decorre da sabedoria…
É verdade. Mas atenção, sendo ele embora de uma simplicidade ingénua, sabia bem o que queria. Perguntei-lhe uma vez se era verdade que ele comprava os ovos ao Presidente do Conselho, em São Bento, e ele respondeu-me, candidamente: “Olhe que são muito bons”!
Hoje os tempos são outros.
Hoje existe outra forma de formar chefes. Primeiro, vão para a escola hoteleira. Seis meses mais tarde, estão em funções como chefes num restaurante. Outros seis meses decorridos, e já os vemos a dar entrevistas de 4 páginas nas revistas. Vão à televisão. São consultores de muitas pessoas e sítios. Estamos perante um outro fenómeno, bem diferente daquele do tempo do Mestre João Ribeiro.
As profissões no geral estão a atravessar grandes transformações.
Sim, é verdade que o fenómeno que apontei acontece noutras profissões, não é só na dos cozinheiros. Mas em relação a estes, tenho de dizer que não entendo por que os chefes não estão no seu posto de trabalho, no exercício das suas funções. Neste momento, eu só vou a restaurantes caros quando tenho a certeza de que o chefe lá está. Telefono antes, para me certificar disso.
OS CAMINHOS FUTUROS
Como vê a cozinha de autor em Portugal?
Vejo com óptimos olhos e muito optimismo, sobretudo se ultrapassarmos um certo complexo de inferioridade que está instalado nos chefes portugueses. Tive uma experiência que ilustra bem esta perspectiva, quando confessei a um chefe que tinha gostado muito do puré de batata que tinha acabado de comer. Fiquei admirada quando ele me disse que era do Robuchon! Todos sabemos que o puré de batata de Joel Robuchon, em Paris, é fantástico, mas aquele podia ser o dele; o chefe em causa tem talento mais que suficiente para isso.
Como vê o trabalho que os chefes estrangeiros têm feito sobre o receituário português?
Há exemplos muito meritórios, mas geralmente o termo que devíamos utilizar seria mais abuso do que trabalho para descrever o que se tem feito. Eu sou de opinião que quando se vai para um país como o nosso, que tem uma boa cozinha, com boas raízes, não faz sentido corrompê-la!
Mas há excepções, com certeza…
Gostei muito do que aconteceu com o Lapa Palace, no restaurante Cipriani. O chefe Franco Luise fez um bom trabalho, não só em termos de cozinha italiana mas também nas pontes com a nossa cozinha. Deixou um trabalho sólido, que o chefe Giorgio Damasio tem continuado com sensatez e inteligência. Um exemplo de como o respeito pode ser um caminho seguro para fazer um bom trabalho.
Acha que os chefes de primeira linha são consumidores da cozinha que praticam nos seus restaurantes?
Esse é um aspecto interessante. Muitas coisas que os chefes fazem e pensam têm muito a ver com o que eles comem! Numa edição da revista “Saveurs”, em que Ferran Adriá estava a ser entrevistado, a certa altura lê-se que se sentia um cheiro de chocos a grelhar nas brasas e ele, como que por impulso disse “disto é que eu gosto”! David Lopes Ramos entrevistou o chefe Juan Marí Arzak, a quem perguntou se ele comia regularmente os pratos da sua carta. Ele respondeu que não, que do que ele gostava mesmo era de uma boa caldeirada!
Quer isso dizer que advoga um regresso às tradições?
Não, longe disso. Mas gostava de lhes perguntar por que não comem aquilo que fazem e propõem às pessoas. É que muitos chefes fazem grande pesquisa, mas o que eles próprios procuram no seu quotidiano são os seus sabores. Temos de qualquer forma de venerar a grande ciência e técnica que hoje povoa a cozinha vanguardista.
É cliente da cozinha de vanguarda?
Sem dúvida! Vou com mais vontade a restaurantes onde há novidade. Os bons sabores portugueses, felizmente, são servidos todos os dias na minha casa.
Ferran Adriá é um dos grandes vanguardistas da actualidade mas já confessou que tem saudades de cozinhar cataplanas…
Já me disseram que ele tinha dito isso. Eu tenho muito respeito por ele, ele pratica uma cozinha de altíssimo nível, de grande apuro técnico. Ele próprio avisa num livro dele que os pratos são de muito difícil preparação e que não é possível reproduzi-los em casa. Portanto, só ele consegue executar a sua cozinha. Mas isso não tira que Espanha lhe deva muito, pelo que ele fez pela cozinha do seu país.
Houve um movimento colectivo em Espanha que podia servir de exemplo para nós.
Espanha puxa toda para cima, enquanto em Portugal muitas vezes se opta por que vá tudo abaixo, para evitar promover alguém em particular. Isso não é justo, porque cinco ou seis grandes chefes podem ajudar a promover o trabalho de milhares!
Acha que o cliente médio de restaurantes conhece bem a cozinha e os produtos portugueses?
Está aí também um aspecto relevante, porque eu acho que o cliente médio português sabe pouco e facilmente corta com a tradição e com o passado. Por exemplo, agora inventou-se a história e a moda do “queijo líquido”, tão amanteigado que a casca se converte num recipiente para o creme, que passa a tirar-se com uma colher. Eu hoje mando para trás, mas tenho sido bastante criticada por isso; as pessoas gostam!
Não podemos terminar a entrevista sem ouvir a sua opinião sobre a cozinha molecular.
Neste momento, noto alguma confusão nos consumidores. Há um problema de conceito. Hervé This inventou o termo “gastronomia molecular”, o que levou muitas pessoas a pensar que se trata de um novo tipo de comida. Vejo pessoas a experimentar, com a expectativa errada.
Há resultados interessantes.
Muito interessantes. A primeira coisa engraçada e útil que Hervé This fez foi desmistificar muitas das crenças que povoavam a cozinha. Deu-lhe um sentido mais científico e menos supersticioso, o que é muito bom. Os trabalhos que desenvolveu são estruturantes e permitem, de facto, explorar zonas menos conhecidas. Em Portugal, as professoras Margarida Guerreiro e Paulina Mata, juntamente com as suas equipas, têm desenvolvido um trabalho notável, que pode potenciar as valências dos nossos chefes.
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