quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Jonathan Nossiter: “Eu não sou um profeta”




Realizador do polémico Mondovino, um filme de tese no qual colocou face a face industriais e autores de vinhos, Jonathan Nossiter escreveu um livro ainda mais acutilante, “Le Goût et le Pouvoir” – Gosto e Poder -, publicado entre nós com o título Mondovino. Não se trata do livro do filme, nem a mensagem é a mesma, já que se fixa em definitivo na exposição das complexas redes de interesses que envolvem jornalistas, produtores, enólogos e negociantes, numa prosa de fácil leitura, à qual ninguém fica indiferente. Nossiter vive no Brasil com a sua família, a sua profissão é cineasta e com a publicação do livro considera encerrada a sua contribuição pública para o cenário mundial do vinho. Cidadão do mundo, nasceu nos EUA e por força da profissão do seu pai como correspondente internacional do Washington Post, viveu em França, Inglaterra, Itália, Grécia e Índia. O invulgar conhecimento que tem do negócio e das pessoas do vinho – já foi sommelier - , juntamente com a sua perspectiva independente, tornaram-no no mais qualificado relator e delator dos fenómenos globalizantes do vinho, na sua opinião a mais perigosa das actuais tendências do sector.


É pena ter-se chamado Mondovino à tradução portuguesa do Le Goût et e Pouvoir.
Sim, isso não foi escolha minha. Nos outros países, ele chama-se Gosto e Poder. São obras totalmente distintas; a ideia do livro não é retomar o conceito do filme. Até porque a pessoa que escreveu o livro é diferente da que fez o filme.

No livro, dá uma tónica cultural acentuada ao vinho
Tive duas coisas que me animaram. A primeira foi falar do vinho num contexto cultural geral; onde toda a gente cabe. O vinho tornou-se num produto do consumismo do mercado e no entanto ele vem dos primórdios da relação do ser humano com o planeta e com os outros seres humanos. A outra coisa, foi poder dar voz a alguns produtores que têm uma forma radicalmente diferente de falar daquela que os críticos utilizam.

Por outro lado, ao ir contra a moda, está a criar uma outra moda…
As coisas não se devem ver assim. Eu respeito toda a gente. Eu não sou vegetariano, por exemplo, mas respeito aqueles que o são. Da mesma forma que repudio os vegetarianos que atacam toda a gente que come carne! Nos vinhos, fiquei com a fama de atacar o crítico norte-americano Robert Parker e de ser seu inimigo, o que não é muito justo. Eu não tenho nada contra ele, até acho que ele tem lugar no mundo do vinho. Só me preocupa que ele se torne dominante no mundo.

Deduz-se que não gosta dos “vinhos Parker”.
Pessoalmente, eu não gosto dos vinhos com pouca acidez, concentrados, com sabor adocicado, grau alcoólico elevado e notas fortes de carvalho francês. Eu gosto de vinho com acidez pronunciada, por exemplo e o facto de por vezes um vinho estar oxidado não é suficiente para eu o por de parte.

Um vinho com defeitos não é necessariamente um mau vinho.
Claro que não, há que olhar para ele como um conjunto. No Brasil, tanto a temperatura ambiente como a pressão barométrica fazem evoluir os vinhos mais depressa do que noutros sítios. Encontrei há pouco tempo umas meias-garrafas de Frei João branco num supermercado do Rio de Janeiro que achei fantásticas. Um provador dos nossos dias teria dito que elas estavam arruinadas, mas deu-me muito prazer bebê-las.

Os leitores do seu livro podem convencer-se que abomina tudo o que é vinho moderno e concentrado?
Não, nem pensar! Eu gosto do vinho que é expressão directa do sítio de onde provém. Especialmente para quem vive na cidade, é aí que reside muito do seu interesse. Se numa prateleira os vinhos forem todos iguais, o que ganhamos com isso?

Os vinhos ditos biológicos trouxeram essa promessa…
E muitos falharam! Se eu sou normalmente contra os vinhos industriais, por nos afastarem dos vinhedos e do terroir original, também sou muitas vezes contra os “vinhos bio”. Em França, há a moda do “bar a vins bio” (bar de vinhos biológicos), quando em muitos só há marketing, vinhos maus, mal feitos. Sou radicalmente contra essa onda.

Facilmente surgem correntes que mais parecem religiões.
O que é perverso e se deve evitar absolutamente! A biodinâmica nalguns produtores esconde muitas vezes atitudes radicais e extremistas.

Refere no seu livro o borgonhês Dominique Lafon como exemplo de inteligência na utilização da biodinâmica.
E é de facto exemplar, porque não abdica do seu conhecimento herdado das gerações anteriores nem da sua inteligência para adoptar. Ele melhorou as suas vinhas de Montrachet, conseguiu resultados muito bons para os seus vinhos e não teve de se render ao fanatismo biodinâmico.

Há muitos caminhos para chegar aos bons vinhos?
Muitos, quase tantos quantas as pessoas que os estão a fazer. Isso foi qualquer coisa que eu quis deixar muito claro com o meu livro. A diversidade é muito importante.

Na Borgonha, com duas castas apenas – Chardonnay e Pinot Noir – a diversidade não é problema.
Isso foi trabalho do tempo e também da exigência de individualidade que caracteriza o povo francês. Cada um parece saber muito bem o que o distingue dos restantes e tem muito orgulho nisso. Esse que pode ser um grande defeito é também uma grande virtude, porque as influências exteriores e as modas praticamente não têm lugar. É que às vezes, especialmente na Borgonha, é nos aspectos mais finos e subtis que estão as grandes diferenças. Elementos históricos, geológicos, humanos, culturais, proporcionam em conjunção uma personalidade ímpar aos vinhos.

Um potencial realizado, contra o potencial ainda por descobrir noutros locais?
Nas terras do Luís Pato, por exemplo, quem sabe qual pode ser o futuro. O passado é rico e relativamente conhecido. Talvez não tenha chegado ainda ao nível da Borgonha, mas há muito poucas no mundo que conseguiram esse feito. Há que conhecer melhor e continuar sempre esse trabalho, resistindo à globalização.

Como Bordéus?
Bom, Bordéus é diferente. O que determinou a importância e evolução de Bordéus foi claramente o negócio, a internacionalização e as exportações. São mais de oito séculos de desenvolvimento a pensar em agradar às comunidades exteriores. Aliás, só assim se explica que desde há 25 anos os seus vinhos se tenham tornado totalmente globais. Hoje, mesmo os vinhos de topo quase perderam as suas características genuínas. Bordéus, Espanha e Califórnia, quase todas produzem hoje o mesmo perfil de vinhos.

É bem-vindo em Bordéus?
Acho que não! Sou mais ou menos persona non grata entre os bordaleses mais poderosos. Mas há um fenómeno que é muito interessante. Depois do filme e depois do livro, tive muitos vinhateiros da região que vieram ter comigo a agradecer ter tocado na ferida e no que é essencial, que é a veracidade e genuinidade dos vinhos de Bordéus. Pura e simplesmente, antes eles tinham medo de falar. O meio é muito mafioso.

O seu livro denuncia muitas “ligações perigosas” entre críticos, produtores e negociantes.
Que são verdadeiras e demonstráveis. Veja o que se passa com a Revue du Vin de France que, sendo uma das mais influentes de França, tem práticas correntes de corrupção que arrastam leitores e consumidores para a total confusão e perversão. Veja a Decanter, no Reino Unido e compare conteúdo editorial com publicidade e logo vê. Em todo o mundo, as principais revistas estão minadas pela corrupção.

Parker tornou-se um grande especialista de Bordéus mas não da Borgonha. Porquê?
Porque os produtores da Borgonha têm a personalidade de Astérix! Resistir até ao fim! Eles vão sempre resistir ao poder imperial. As opiniões de Parker não contam entre eles. O que pode ser um modelo para o resto do mundo, para os produtores que oferecem ao mercado o seu próprio perfil e os vinhos que reflectem a sua personalidade. Estou muito animado com o fenómeno italiano, que fez com que em 15 anos em quase todas as regiões apresentasse sinais evidentes de resistência à globalização.

Mesmo a Toscana?
Sim, até a Toscana. Eu cresci na Toscana e só agora, que estou a viver no Brasil, estou a tomar contacto com vinhos toscanos fantásticos que eu não conhecia!

Renuncia à ideia de ser um profeta anti-globalização nos vinhos?
Eu não sou profeta de coisa alguma. Eu ganho a minha vida a fazer filmes e é isso que vou continuar a fazer. O que Mondovino (filme) e “Le Goût et le Pouvoir” (livro) representam é a minha análise enquanto observador atento. Eu não faço tenções de continuar a intervir no sector dos vinhos. A minha obra nesse sentido acaba aqui.

Veremos…
Penso que fico por aqui. Eu faço tudo com muita paixão, o que se nota muito no meu trabalho sobre os vinhos e tudo o que o rodeia. São os meus filmes que são aquilo que eu faço.

A propósito, têm aparecido alguns filmes que falam do vinho e que têm ido bastante sucesso. Como os vê? O Sideways, por exemplo.
O caso concreto do Sideways, foi claramente uma operação de marketing. As vendas de Pinot Noir californiano subiram bastante após o filme, o que me parece ter sido a principal intenção. É um problema complexo, o da independência da arte em relação ao capital. O realizador desse filme, Alexander Payne, é um bom profissional e tem no seu passado filmes que eu considero muito. O “Eleição”, por exemplo, é uma crítica muito dura da sociedade americana, cheia de acidez e coragem. Agora, tornou-se num realizador bonzinho e alinhado com o sistema, o que não deixa de me surpreender.

Depois, há o aspecto objectivo que muitos dos filmes que tratam de vinho insistem em mostrar, que é da associação do vinho à sedução…
(gargalhada) É verdade! Mas há outros que vão mostrando aspectos ideológicos bastante mais preocupantes. “Bottleshock”, filme de imenso sucesso nos EUA e que penso não ter chegado ainda à Europa, fala da célebre prova de Paris de 1976 [que opôs França à Califórnia, com a vitória desta última].

Franceses contra americanos, num filme de um americano, é fácil imaginar no que dá!
Publicidade gratuita contra “o francês” patético, chato, tradicional e idiota, enquanto mostra o americano como maravilhoso e aberto ao mundo que conquista o sucesso por mérito próprio! Espelho de uma cultura realmente virada para si própria.

Já agora, por que não ganhou França a prova?
Para começar, eu acho que uma prova cega não tem qualquer valor científico; só tem valor lúdico. Provar um vinho durante 20 segundos e cuspir é como beijar uma miúda para avaliar como seria a minha vida com ela para o resto da vida! É um insulto!

Então é radicalmente contra as provas tal como se fazem hoje em dia?
Elas são, para mim, um grande nada! Você pode avaliar algumas coisas, mas é impossível fazer um juízo correcto do conjunto complexo de coisas que é um vinho. Além disso, um vinho francês dessa altura demora muito mais tempo a amadurecer do que um vinho da Califórnia, por isso onde está a justiça de provar ambas as proveniências com o mesmo tempo de maturação?

No entanto, nos anos 70 a Califórnia estava ainda longe da super-concentração que se conheceu mais tarde.
Sim, mas pôr em prova vinhos franceses com apenas 3 anos de idade é condená-los à partida, sobretudo daquela época! Eu tive a sorte de provar vinhos californianos muito bons, da década de 70. Tal como o cinema americano de então, cheios de defeitos mas cheios de energia e personalidade. É claro que, comparando esses vinhos com os agrestes e crus vinhos franceses da mesma altura, as pessoas os preferiram.

Os vinhos clássicos franceses precisavam de mais de uma década para atingir a maturidade.
Os Meursault Charmes do pai de Jean-Marc Roulot (Borgonha) eram ainda mais ácidos que os do filho, difíceis de apreciar plenamente com menos de 10-15 anos de maturação. É claro que não podiam ser aclamados.

Mas 30 anos depois, os franceses voltaram a perder…
Isso não é inteiramente verdade, até porque alguns produtores não enviaram os seus vinhos para a prova. Jean-Marc Roulot, por exemplo, recusou-se a apresentar os seus vinhos.

São provas importantes, não são?
Nada importantes. Elas fazem parte do negócio do vinho, mas nada têm a ver com a cultura do vinho.

Parece também um processo freudiano, de “matar o pai”.
Sim, nesse sentido os franceses são um pai que merecer ser morto, mas que há que ressuscitar depois, assumido de outra forma!

Porque é França que continua a marcar o ritmo?
Penso que já não. O nova-iorquino consumidor de vinhos, já opta, por exemplo, pelos brancos alemães e austríacos, pela grande complexidade e profundidade que conseguem apresentar. São, num certo sentido, colocados a par com os grandes brancos da Borgonha, com preços muito mais baixos.

Está tudo mais distribuído?
Já não há um país apenas, apesar de França ser o mais importante. Há 25 países onde se estão a fazer vinhos cheios de personalidade, com a marca do seu autor. Sinal mais saudável não há!

Mas agora estamos em plena crise e muitos não vão aguentar.
Ainda agora vim de Paris, onde estive com o chefe Alain Dutournier, do restaurante Carré des Feuillants – para mim, a melhor mesa de Paris, já agora – um dos raros chefes que tem uma grande paixão pelo vinho. Em vez de estar preocupado com a crise, vi-o muito confiante.

A crise também traz oportunidades?
Para ele, esta crise vai fazer desaparecer os que ele chama de David Copperfields da gastronomia, deixando lugar para quem traz alimentação saudável para o ser humano, seja na comida seja no vinho. Eu acho que ele tem razão, apesar de lamentar o sofrimento que isso vai trazer.

A terminar, quais são os vinhos que tem na sua garrafeira?
Eu tenho vinhos de 25 países na minha garrafeira. É uma selecção estritamente pessoal, como deviam ser todas as garrafeiras. Muitos deles são feitos por pessoas que eu conheço e respeito muito, com quem tenho aprendido todos os dias qualquer coisa.

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