sábado, 12 de março de 2011

Um Céu assim, dará para navegar?

Afinal, o "rei" vai mesmo nú... cá e lá, a mesma vertigem


Entretiveram o mundo com as suas divergências, oposições e picardias, à maneira do tabuleiro de xadrez. Obrigaram a opinião e a crítica a definir-se como nunca; ou preto ou branco. Ferran Adriá (El Bulli, Roses) e Santi Santamaria (El Racó de Can Fabes, Sant Celoni), dois geniais criadores catalães, são talvez os maiores exemplos de cozinheiros que conheço que fizeram da vida convicção e da convicção vida. Santi Santamaria acabou de nos deixar, vítima de ataque cardíaco, pouco tempo depois de reafirmar que a cozinha era o coração do restaurante, o conjunto sendo como um organismo vivo completo que é preciso tratar e acarinhar. Estava rodeado de amigos espanhóis no Santi, a sua estreante casa em Singapura. Acusou Adriá, no seu livro “La Cocina desnuda”, de utilizar substâncias perigosas na elaboração dos seus complexos pratos. Também escreveu coisas perfeitamente razoáveis, mas foi pelas negativas que foi notado. Santamaria ficou totalmente isolado nas suas acusações, ainda por cima com a fama de invejoso e ciumento. Até um abaixo-assinado de cozinheiros correu por Espanha, solidarizando-se com Adriá contra o homem de Sant Celoni. Ao mesmo tempo, Ferran Adriá já estava inquieto com o êxito do seu restaurante, a que as pessoas já iam mais pela osmose do que pelo prazer. 400 pedidos de reserva por cada lugar disponível, quando a sua vocação de cozinheiro exigia poder servir a todos. Aclamação universal como melhor cozinheiro de todos os tempos, tão contra a sua própria percepção do que é ser cozinheiro. E um negócio calamitoso, salvo apenas por produtos e branding. Algo de dramático teria de acontecer. Um ano volvido desde o seu anúncio de encerramento do El Bulli, Adriá abriu o jogo: não vai haver mais El Bulli com Ferran como cozinheiro.
Divididos que ambos estavam pelas suas impressões aparentemente dissonantes acerca do rumo que devia levar a cozinha, talvez fossem mais parecidos do que diferentes. Eu vi os olhos rasos de lágrimas de Adriá no Madrid Fusión, quando anunciou o início da construção da Fundação El Bulli no próximo dia 31 de Julho. O restaurante, tal como o conhecemos, fecha definitivamente no dia anterior. A máxima de Rimbaud - “Il faut être absolument moderne” -, vertida para os novos caminhos da sustentabilidade e da tecno-emoção – vai cair em Roses na forma de pequenas partículas e fazer crescer o espaço existente para um outro, tipo cidade do futuro, onde se fará experimentação e pesquisa sem limites nem constrangimentos. Finalmente, o mundo vai perceber que Adriá tem um caminho só seu e que para onde ele vai começa a ser impossível copiar. Vamos voltar ao nosso “negócio” do sabor, da tradição e do produto. Talvez nunca se tenha compreendido verdadeiramente onde o chefe do El Bulli queria chegar. Durante alguns anos, todos nos ficámos pelas espumas, texturas e transformações. Havia mais. Muito mais. Havia a sua fantasia. Um cozinheiro sem fantasia é como um carro sem motor. Andamos de volta dele, tiramos umas fotografias interessantes, mas não vamos a lado nenhum. É por isso que eu digo e volto a dizer que Adriá e Santamaria eram parecidos. Só quem não os conheceu é que pode dizer o contrário. O trabalho feito por Santi sobre a peça aparentemente simples que é o toucinho, que é senão um trabalho de textura e aromas? A beterraba em quatro texturas – ou estações – de Ferran, que é senão a celebração de um produto basicamente ignorado? O problema, para mim, de ambos foi terem recorrido ao que faziam pior: verbalizar. Deviam ambos ter-se cingido ao que faziam melhor: cozinhar. Os cozinheiros, por muito educados e requintados que possam vir a ser, nunca serão relações públicas. Um pouco como os músicos, os pintores, os arquitectos e todos os outros que tratam do firmamento que nós utilizamos como orientação. Isto quando Santi Santamaria afirmava com paixão que um cozinheiro não é um artista; é um cozinheiro. Santi, estavas enganado, eras artista. Como Ferran Adriá, artista de três estrelas. O Guia Michelin mostrou com clareza que gosta tanto do moderno como do tradicional. Por isso, está tudo em aberto, até para nós. Os dois génios da Catalunha criaram, realmente, novos caminhos. Santamaria primeiro, Adriá depois.

A propósito, corre ainda por cá a sangria e a ditadura das estrelas Michelin. Esprememo-nos e sai pouco ou nada. É que a nós, portugueses, calhou-nos a sorte macaca. Os inspectores que nos visitam continuam mal informados e relutantes em reconhecer em Portugal raízes culinárias tão ou mais profundas que em Espanha. Não estudam, não perguntam nem conhecem o sabor português. E andam por aí desalmados a distribuir cartões de visita pelos restaurantes por onde passam. É que eles trabalham para uma editora. Editora essa que vive e lhes paga com os livros que consegue vender. Penso que está tudo dito. O resto é negócio. Eu prefiro fixar-me nos nossos heróis, os nossos brilhantes e esforçados chefes. A iniciativa Taste Portugal produziu em mim um sentimento de orgulho que nem eu próprio esperava. Foi o maior stand de sempre do Turismo de Portugal, aquele que pontificou na Fitur, em Madrid – que momento bonito, o do jantar na Embaixada de Portugal! -, e o tema central era a cozinha. Brilhante. Mesmo que tenha de ser em espanhol, digo “delante, comandante”! José Bento dos Santos governa no Taste Portugal um orçamento que é um infinitésimo daquele de que dispõe Ferran Adriá, o embaixador mundial da marca Espanha. Espero que não lhe exijam resultados sequer semelhantes.

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