terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Salve-se a chanfana!

Como quase todos os outros pratos antigos, a chanfana não tem assento de nascimento nem cartilha obrigatória. Vive de nomes vagos e ingredientes de natureza difusa. Há poucas dúvidas de que nasceu para a cabra velha, em jeito de aproveitamento e as leituras modernas sentem-se aqui e ali. Pede novos autores e clama por inovação.

Quando queremos perceber melhor um prato da tradição portuguesa, daqueles que nos parece de sempre, tal a antiguidade neles percebida, devemos fazer sempre duas coisas: olhar para a sua história na perspectiva de busca das receitas originais, por um lado, e ver se o dito prato ainda vive e como. A primeira serve para criar um fio condutor entre passado e presente, bem como situar-nos no tempo e na história, fazendo esse exercício inefável que é colocarmo-nos na cena, compondo o lugar na forma imaginada. A segunda, naturalmente, segue a linha pragmática do "modo de fazer". Sabemos que é muito difícil que alguma coisa saiba ao que sabia há 200 anos mas podemos aceitar que determinado preparado ou prato confeccionado que temos à frente representa com justeza e rigor a melhor aproximação possível aos manjares de outrora. Enquanto ainda contamos com alguns redutos restaurativos onde a encontramos feita de forma limpa e cândida, aproximamo-nos da chanfana para lhe sondar contornos e limites e pensar em termos de harmonias vínicas. A regressão etimológica da palavra chanfana sugere a um tempo as palavras sinfonia e chanfaina, ambas são admissíveis na lógica da evolução da língua e dos termos culinários. Chanfaina é um prato das raízes do povo nosso vizinho, no qual são processadas as vísceras com cebola e especiarias, extraídas entretanto para livrar as partes mais nobres limpas de sabores e cheiros espúrios que eventualmente seriam gerados na assadura ou estufagem. A origem parece por isso ser camponesa, do tempo em que os pastores tinham de entregar a parte melhor aos senhores, sobrando bofes, corações, fígados, rins, gorduras, abas, cabeças, etc., que cozinhavam de acordo com as respectivas tradições. Desenvolveu-se em torno da chanfaina todo um conjunto de tratamentos preliminares e preparações, visando a facilidade acrescida de cozedura. Chanfaina parece ser mais aplicável que sinfonia, apesar da matriz etimológica nos forçar a pelo menos colocar a hipótese. Exprime sobretudo a ideia de diversidade, o que faz sentido, já que ossos, peles, vísceras e carnes são levadas num mesmo recipiente ao forno.
As referências rápidas de que hoje dispomos obrigam-nos a perceber na chanfana portuguesa diferenças notórias. Herdámos o nome, mas não a prática. De facto, entre nós o prato é elaborado sobretudo a partir de cabra velha, que como se sabe tem uma carne que em cru é rija como couro, e que qualquer tentativa de a assar, fritar ou cozer resulta em catástrofe se não se lhe dá uma marinada valente, ou tratamento de choque. Diz-se que pegou entre nós a chanfana no Séc. XIX, no tempo das invasões francesas, em que só os animais de criação mais velhos escapavam aos saques diários e sistemáticos dos rapazes fiéis a Napoleão. Estas verdades valem o que valem mas aceitamos sem resistência a ideia de que de facto se trata de um aproveitamento de carnes. Isto passa-se essencialmente na Beira Litoral, lugar onde ainda hoje uma ou duas vezes por semana os locais lhe rendem homenagem, seja nos seus lares seja nos restaurantes das imediações. Entende-se como cabra velha aquela que já não procria nem produz leite. O tempo de vida útil, em termos de criação, é aquele em que dá cabritos ao dono, o que nos liga também à ideia de que o cabrito é uma boa pista para chegar aos bichos na idade adulta, à maneira de pesquisa. Por sua vez, o irrequieto e infantil saltarilhão só é feliz na serra, onde pode andar para cima e para baixo, exercitando a sua ainda frágil massa muscular mas à qual com o movimento confere um sabor muito bom. Estamos por isso sempre a falar de uma prática serrana. Quando subimos na geografia e vamos para o interior, quase existe uma transposição da prática da cabra para a ovelha. E encontramos, de facto, chanfanas feitas a partir das lanzudas criaturas, com melhores ou piores resultados.
Como é feita a chanfana? Corta-se o bicho em partes pequenas e põem-se dentro de uma caçoila de barro, a que se junta banha, sal, colorau, alho, folha de louro e piripiri. Cobre-se tudo com vinho tinto, fecha-se o recipiente com a tampa e leva-se a forno de lenha para ao longo de cerca de 6 horas ou mais ficar a cozer lentamente. Diz-se que a utilização de vinho para fazer este prato resultava da renúncia à utilização de água para cozinhar, fosse por estar envenenada pelos soldados franceses ou porque podia ser transmissora de doenças. Dita doutra forma, a consagração do vinho como forma de beber boa água. É nas beiras, de facto, que as marinadas deixam de ser feitas em vinho branco e dão lugar à vinha d'alhos. O vinho sempre foi, além disso, considerado um meio asséptico. Nos tempos modernos, que são os nossos, já se não levam as gorduras más à caçoila; as chanfanas saem hoje limpinhas e apetitosas, cheias de temperos e tratamentos que cada cozinheiro lhes quer dar. Até ver, o prato não está por isso em risco. Mesmo assim, não nos esqueçamos de o chamar à nossa mesa!


Harmonizações

Ensaiámos a chanfana com quatro vinhos bastante diferentes, alguns até talvez inesperados. É um prato no qual devemos esperar a presença de gorduras saturadas, bem como de aromas e sabores muito intensos, razão pela qual está longe da consensualidade.

+++ Quinta Nova N. S. Carmo Mirabilis Grande Reserva DOC Douro tinto 2011
É um vinho poderoso, mas ao mesmo tempo elegante. Vai ao encontro das especiarias presentes na chanfana, desmaiando em nuances de gosto que dão prazer. É este tipo de harmonia que procuramos idealmente numa boa conjugação.

++ Quinta do Couquinho Touriga Nacional DOC Douro rosé 2012
Está um rosé de mão cheia, gastronómico, e com mais um ou dois anos ainda vai ficar mais pronto para a mesa. Com a nossa chanfana, conseguiu criar um corte apreciável da gordura do prato, recondicionando-nos o palato como se impõe.

++ Herdade do Sobroso Cellar Selection Syrah & Alicante Bouschet DOC Alentejo tinto 2009
A riqueza aromática deste vinho, juntamente com a noção de grande equilíbrio de boca que inspira, tornam-no parceiro de pratos condimentados e equilibrados. É por isso importante que a própria chanfana seja ela própria completa, no sentido de não pesar nem precisar de correcções, o que sabemos ser raro.

+ Adega Mayor Solista Touriga Nacional DOC Alentejo tinto 2010
Quanto mais evolui este vinho mais complexidade lhe reconhecemos, e mais capacidade gastronómica lhe sentimos à mesa. É um vinho poderoso, encorpado, e ao mesmo tempo elegante. Pode ser um pouco esmagador, dominante, com a chanfana, mas há um lado de descoberta a que damos facilmente as boas-vindas.


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