sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Carta astral para 2014

Estamos naquela altura do ano em que esperamos grandes mudanças e depois quase nada muda, na grande ordem estabelecida pelo guia vermelho Michelin em relação aos nossos restaurantes.

Parecemos esquecidos aqui num canto e cada vez que nos calha uma estrelinha que não esperávamos - e nunca esperamos as que calham, sejamos sinceros - entranha-se-nos uma euforia que nos põe nos píncaros. Cultivamos os heróis instantâneos - aqueles que o desmazelo da novidade acaba de instalar -, despedimos aqueles que foram empurrados dos terraços do olimpo, e ignoramos todos os que permanecem nos seus postos. Os vaticínios para a edição de 2014 já foram revelados, e, mais coisa menos coisa, fica tudo na mesma. Para começar, Portugal é tão pequeno que a Michelin publica o guia de Espanha e Portugal numa publicação apenas. Em termos de estrelas, estamos totalmente asfixiados: dos 8 restaurantes com 3 estrelas que figuram no guia, nenhum deles é português; dos 19 que ostentam duas estrelas, apenas dois - Ocean e Vila Joya - são portugueses; e apenas 10 dos 144 (!) restaurantes  com uma estrela são nossos. Mesmo contando com as diferenças do território, historial e projecção internacional, há qualquer coisa que está muito mal em Portugal e que talvez estejamos a resistir a ver de forma lúcida. Ou então há uma espécie de conspiração contra nós, o que é francamente pouco provável.
À nossa microescala, mesmo assim, há óptimas notícias. É sempre bom saber que o Eleven lutou por reaver a estrela que perderam e conseguiu. Joachim Koerper e sua equipa cerraram fileiras e souberam impor-se. É revigorante ver Miguel Laffan coroado com a primeira estrela da sua vida, no espectacular L'And Vineyards, hotel em Montemor-o-Novo. Francamente jovem ainda, Laffan um palmarés interessante e diversificado. Ao alcançar uma estrela MIchelin para este seu primeiro projecto alentejano, marca uma malha importante tanto para a cozinha alentejana como para o Alentejo, propriamente dito. Não é a primeira estrela a ornar um restaurante alentejano - isso aconteceu com o Bolota (Terrugem), em 1992, com Júlia Vinagre - mas é uma estrela com sabor acentuado a vitória. Apoiado por José Cunhal Sendim, proprietário e gestor de todo o projecto hoteleiro e imobiliário, Miguel Laffan arriscou tudo; ousou. E conseguiu. Bravo, portanto. Não foi menos boa notícia que quase todos os já detentores de estrelas mantiveram o seu estatuto. Vila Joya e Ocean estão à cabeça dessa glória muito nossa.
O Ocean, restaurante de topo do Vila Vita Parc, em Armação de Pêra, é candidato natural à terceira estrela desde o dia em que ganhou a segunda. E é também um restaurante de características únicas, desde o convívio cara a cara, intimista, com os empregados, seja qual for a função, até à cozinha maravilhosa e surpreendente de Hans Neuner. O Vila Joya chegou primeiro à segunda estrela e é um dos lugares mais extraordinários do mundo para jantar. Dieter Koschina tem uma equipa de sonho à sua volta, desde a porta da entrada até à copa suja, passando pelo serviço de quartos. Passando agora aos que têm uma estrela, começaria por destacar os que deviam avançar para o estatuto biestrelado. Belcanto (Lisboa), Fortaleza do Guincho (Cascais) e Il Gallo d'Oro (Funchal) são para mim indiscutíveis, talvez com destaque para a Fortaleza do Guincho, onde Vincent Farges introduziu emoção e complexidade sem desvirtuar a inspiração matricial imprimida por Antoine Westermann, além do promontório atlântico único que continua a ser. José Avillez conseguiu, no seu Belcanto, ter a um tempo uma sala competente e uma cozinha brilhante. Tem de vir depressa a segunda estrela, para criar flecha no túnel dos grandes chefes, no qual cabem muitos talentos portugueses. Cada vez que se debruça sobre um prato tradicional e o pensa com a profundidade que só ele sabe - lembro-me de uma lebre com feijão, por exemplo -, o resultado é espectacular. E Benoit Synthon, com o seu coração enorme e bonomia a toda a prova, apesar de ser pouco visitado no seu restaurante funchalense, é dono daquele brilho absoluto reconhecemos nos grandes. Finalmente, os "uniestrela". Casa da Calçada, em Amarante, tem Vítor Matos super-oficiante e a produzir uma cozinha rica em emoção e sabor, que merece não só a viagem mas a visita recorrente. Foi "devolvida" ao Eleven, em Lisboa, a estrela que nunca deviam ter deixado escapar, ainda bem, Joachim Koerper é um criador e cozinheiro como poucos por cá. O Feitoria, no Altis Belém, conservou a estrela, resistindo ao afastamento de José Cordeiro e à assunção de João Rodrigues, que soube permanecer e fazer o seu trabalho com invulgar talento. Henrique Leis, em Almancil, parece outro, hoje em dia, vejo-o feliz e realizado e claro que continua brilhante no seu posto. Queremo-lo por cá, magnético e de gargalhada fácil. De Laffan já falei, faltam apenas o Willie's, em Vilamoura, e o Yeatman, em Gaia, que emparelho por serem um dipolo muito marcado. Enquanto o primeiro apresenta um programa relativamente simples e previsível, o segundo está, na pessoa de Ricardo Costa, a fazer festival constante e uma homenagem ao sabor português. Sem desprimor para os jantares vínicos, há que marcar na agenda uma visita ao restaurante, porque é impressionante.
Vejam como cabe num artigo tão curto a panóplia Michelin dos nossos restaurantes. Está nas mãos dos empresários de restauração pedir mais atenção ao pessoal do guia vermelho. Nós sabemos que estamos melhor que nunca, e de cabeça consigo enumerar mais de vinte casas que já deviam ostentar o galardão. Mas tudo isso só depois de explicaram devidamente por que razão tiraram agora a estrela ao São Gabriel, quando Leonel Pereira estava glorioso à espera de todos. E, já agora, diziam por que os inspectores nem sequer visitaram o restaurante em 2013. Há coisas assim. 

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