terça-feira, 9 de junho de 2015

De vez em quando, a profissão

Sobre Ironia
(de Cartas a um jovem poeta, de R.-M. Rilke)

"Não se deixe dominar por ela, sobretudo em momentos estéreis. Nos momentos criadores procure servir-se dela, como de mais um meio para agarrar a vida. Utilizada com pureza, ela também é pura e não nos deve envergonhar. Ao verificar, porém, que se familiariza demais com ela, temendo uma intimidade excessiva, volte-se para os objetos grandes e graves, diante dos quais ela se encolhe desajeitada. Busque o âmago das coisas, aonde a ironia nunca desce; e ao sentir-se destarte como que a beira do grandioso, examine ao mesmo tempo se essa concepção das coisas deriva de uma necessidade de seu ser. Sob a influência das coisas graves, com efeito, a ironia ou o abandonará por si mesma (se tiver sido algo de ocasional) ou então se reforçará (caso lhe pertença como coisa inata) num instrumento sério, enquadrando-se no conjunto dos meios com o que o senhor deverá moldar a sua arte."

Tenho tido o enorme privilégio de trabalhar de perto com pessoas virtuosas, que tenho visto crescer interiormente e consolidar com a experiência um compacto de conhecimento que muito poucos conseguem alcançar. Está sempre tudo ainda por fazer, o caminho perde-se ainda no horizonte, lá longe. Até à "catedral" de Claudel, há muito por fazer, talvez toda uma vida. Mas é caminho. A opção pela humildade - não confundir com humilhação - e o repúdio da ironia asseguram a aportagem segura.

E não se trata de andar "só" a comer pelas mesas deste país, é um trabalho de luta pela autenticidade e genuinidade dos produtos; Respeito pelas regiões e proximidade; Reconhecimento e distinção do que se distingue do resto. Vinhos, comida, receitas, casas, e sobretudo pessoas extraordinárias, que não sairão mais dos nossos corações. É um trabalho de grande entrega. E é por isso mesmo que ninguém sabe mais que ninguém.

É preciso ter a coragem de assumir e ousar. Ousar sempre.

Agora que sei que é possível comungar de forma imanente estas coisas com alguém e partilhá-las sempre, dou por mim a desejar que os meus filhos consigam pegar em dois ou três fios disto que me ocupa o tempo todo e os liguem à catedral que eu, confesso, apenas intuo.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Caracóis e Alta Cozinha

Quando pensamos que um pratinho de caracóis com molho, servido numa esplanada soalheira ao fim da tarde, é coisa popular e acessível, temos de pensar de novo. O minúsculo molusco gastrópode intriga e interessa aos melhores cozinheiros do mundo a ponto de merecer a aplicação total do seu talento e tempo. Coisa de alta cozinha.

Foi no início de do Séc. XIX que o "grand chef" Antonin Carême, borgonhês de gema, recebeu a encomenda de um prato especial que surpreendesse tudo e todos num jantar de homenagem ao czar Alexandre I. Teve o genial cozinheiro a ideia fundadora de preencher os ocos dos caracóis da sua Borgonha com manteiga e alho e levá-los ao forno quente. Êxito total, e início de uma era refinada e requinta, em todo o globo. Um costume popular que visava sobretudo a erradicação de uma praga dos campos, mascarando-a de petisco, chegava aos píncaros da cozinha; às mesas mais nobres. O receituário é hoje longo, nalgumas declinações mais simples de produzir que noutras, seguindo sempre o mesmo fio condutor, que é o sabor. Aromatizamos, enfarinhamos, grelhamos, temperamos, marinamos, panamos, gratinamos, e o sabor do gastrópode faz esquecer o ódio ao bicho que devasta 10 ha de verdura em meio dia. Andam devagar mas sustentadamente, e comem tudo por onde passam; uma verdadeira tragédia. Os criadores de caracóis em estufas têm planos de contingência muito apertados, pois qualquer fuga pode significar uma hecatombe na população mais próxima. Por outro lado, é raro o português que ao fim de semana não vai por esta altura aos caracóis, há-os à meia dúzia por planta. Em casa, lava-se e lava-se a um estrugido de azeite, cebola, alho e louro, depois cobertos com água e vinho branco e ao fim de uma hora estão prontos a temperar e servir os bicharocos, que se exploram à mesa com palitos, gargalhadas e vinho branco, assessorados por pão e manteiga. Portugal no seu melhor.
A oferta aumentou. Não precisamos mais de ir apanhar caracóis nem gastar o nosso precioso tempo a arranjá-los, as opções são múltiplas para quem não dispensa a vagarosa criatura que leva a casa às costas. A receita próxima da de Carême, por exemplo, está hoje disponível em cuvetes com 6, 8 ou 12 unidades, ultracongeladas, que é só levar ao forno. Também encontramos caracóis de conserva, em frascos e latas, e podemos cozinhar de imediato como se fossem nossos. E usamos especiarias, tais como pimenta, caril, noz-moscada, curcuma, orégãos, pimenta e sementes diversas para chegar ao sabor que pretendemos. Os aromáticos salsa, coentros, menta, sálvia, alho, anis também saem para abrilhantar as coisas ainda mais. E processamos legumes diversos para os acompanhar, principalmente tomate, funcho, cogumelos, batatas e espinafres. Depois e sempre, manteigas, óleos, azeites, e os competentes toucinho, anchovas, queijo, massas folhadas e quebradas para produzir pasteis e tartes maravilha. Inefável, depois de conseguirmos aquela receita afinada, um guisadinho de caracóis, entrada de grande efeito entre amigos ou a dois.
Enganámo-nos quando achámos que os nossos chefs iriam declinar o nosso convite, de criar receitas com caracóis para a Evasões. Não só aceitaram instantaneamente o desafio como surpreenderam e impressionaram, o que prova que o caracol e a caracoleta - caracol grande - estão sempre próximos do coração dos inovadores. O fenómeno continua a dar que falar e fazer. José Avillez, do Belcanto, em Lisboa, abraçou a ideia com os ovos de caracol em mente. "A ideia foi servir um caviar da terra com sabor delicado e bem crocante". O xerém de caracóis, enguia fumada e ovos de caracol que criou significa uma "ligação do mar à montanha através de dois ingredientes algo controversos mas que são maravilhosos". Já Kiko Martins (Cevicheria e Talho, ambos em Lisboa), seguiu uma linha purista e - pareceu-nos - quis, com um brilhante tártaro de salmonete com caracóis e maionese de lima e gengibre, recriar a proximidade do salmonete de Sesimbra e caracóis de Setúbal. Bem, dizemos nós. O périplo tinha de incluir Walter Blasevic, do Lisboète, em Lisboa, cozinheiro de escola de alta cozinha francesa felizmente agora a oficiar para os alfacinhas. Deu uma no cravo outra na ferradura! A entrada canónica de de caracóis em persillade sobre royal de alho, coulis de grelos e pimentão doce, evoca claramente a bandeira bourguignonne; e o lombo de bacalhau fresco assado, batatinha recheada com caracóis, pezinho de porco frito e chouriço representa o total controlo e compreensão do gosto português, numa interpretação sofisticada. As soluções apresentadas pelos três chefs não estão necessariamente nas respectivas cartas. E se lhes exigíssemos?

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Concurso Lisboa à Prova 2014 - Os resultados

Os 73 restaurantes que obtiveram 1 “Garfo” foram: 151 One Five One; 2 à Esquina, Iguarias e Petiscos; 5 Oceanos; A Casa do Bacalhau; A Travessa do Fado; Adega da Tia Matilde; Alto do Século; Areeiro 3, Vinhos e Petiscos; Bastardo; Belém 2 a 8; Brasileiríssimo Avenida; Brasserie de l’Entrecôte – Chiado; Brasserie de l’Entrecôte – Parque das Nações; Café Lisboa; Cantina da Estrela; Cervejaria da Esquina; Champanheria do Largo; Chão de Pedra; Delícias de Goa; Do Carmo ao Chiado; Duetos da Sé; Equador Bar Bistro; Este Oeste; Everest Montanha – Avenida do Brasil; Faz Gostos; Grelhados de Alcântara; Grill D. Fernando; In Bocca al Lupo; La Paparrucha; Le Jardin; Lisboa na Rota das Sedas; Lisboète; Lost In Esplanada Bar; Luzzo de Santa Marta; Madragoa Café; Meson Andaluz Lisboa; Moules & Beer; My Story Restaurante Ouro; O Mercado; O Polícia; Oficina do Duque; Oito Dezoito; Open Brasserie Mediterrânica; Os Tibetanos; People & Food; Picanha; Pimenta Rosa; Pistola Y Corazon; Pizzaria Lisboa; Portugália Cervejaria – Belém; Qosqo; Restaurante Bordalo Pinheiro; Restaurante D’Bacalhau; Restaurante Trivial; Santa Clara dos Cogumelos; Sem Dúvida; Senhor Peixe; Sessenta; Solar dos Leitões; Solar dos Nunes; Stanislav Avenida; Sul; Sushi Café Amoreiras; Tapa Bucho; Tapadinha – Cozinha Russa; Tasca Urso; Tentações de Goa; Tertúlia do Paço; The Decadente; Tico Tico e Novo Rio; Uai!; Varanda de Lisboa; Viva Lisboa.

Os 35 restaurantes que obtiveram “2 Garfos”: 1300 Taberna; Assinatura; Aura Lounge Café; Avenue; Cafetaria Mensagem; Cantinho do Avillez; Chefe Cordeiro; Enoteca de Belém; Estado Líquido Fusion Sushi; Estórias na Casa da Comida; Faz Figura; Flor-de-Lis; Flores do Bairro; Grei; Horta dos Brunos; Jockey; Kampai; Leopold; Lisboa à Noite; Mini Bar Teatro; O Guarda-Mor; O Poleiro; O Talho; Panorama; Páteo Velho – Ordem dos Médicos; Restaurante Aviz; Restaurante Lapa; Rossio Bar Terraço; Sacramento do Chiado; Sushi Café Avenida; Tasca da Esquina; U Chiado; Via Graça; Xapuri Bistro; Zambeze.

Os restantes 7 restaurantes obtiveram o prémio máximo de “3 Garfos”: A Travessa; Belcanto; Eleven; Feitoria; O Nobre – Spazio Buondi; Salsa & Coentros e Varanda.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

As bolas e a praia

Os areais da linha, de Algés a Cascais, eram há cinco décadas lugares que serviam para fazer vida de praia. Nós vivíamos na Estrela e no mês de Julho mudávamos-nos para Santo Amaro de Oeiras de armas e bagagens, para voltarmos apenas um mês depois. Nem se falava em vir a Lisboa. Era muito longe. Ainda passeei à beira-mar com uma tia-avó na que ela insistia em chamar praia de Algés, mais ou menos em frente a Pedrouços, hoje coisa vastamente impensável. Este tipo de perplexidades fazem-me sentir um bocado dinossauro e se não tivesse a certeza absoluta, diria que nunca estas coisas tinham acontecido. Mas não só aconteceram como há mais, do tempo deste microjurássico. Depositados na praia com um ou dois adultos para tomar conta de nós, todos os primos, entrávamos no ciclo do costume dos banhos, brincadeira e futebol – era giríssimo fazer túneis na areia molhada, imagine-se! – e mais ou menos a meio da manhã aparecia uma senhora vestida de branco com uma caixa metálica grande vermelha sobre a cabeça. Lia-se “Maria dos Bolos” e todos sabíamos o que lá vinha dentro. Bolas de Berlim quentinhas, acabadas de fazer na padaria, recheadas com um creme pasteleiro que ainda hoje tenho na memória. Era um momento mágico, o da distribuição das bolas, verdadeira maravilha. Havia quem fosse do contra e preferisse um jesuíta, um éclair ou um pastel de nata. A maioria, contudo, optava pela bola, que uma prima minha dizer ser “de berlinde”. A mesma que quando ia à água, os pés desapareciam para debaixo da areia molhada, e gritava desalmadamente que “estava fora de pé”. Rábulas que se transformaram em memórias cheias de ternura. Muita areia trinquei eu, deixava cair a minha bola ao chão muitas vezes e depois não conseguia sacudir suficientemente o que vinha com a superfície peganhenta do bolo, resultado da fritura em óleo. Fazia parte, tudo fazia parte.
Mais tarde viria o homem da Olá, também ele vestido de branco e com uma sacola pesada a tiracolo, onde trazia os gelados do nosso contentamento. Recolhíamos a casa por volta da hora do almoço, para as bicicletas, os jogos e às vezes o cinema. Tenho uma certa dificuldade em olhar para uma bola de Berlim sem me vir à cabeça a praia da infância e por que se chama assim. Da primeira acabei de tratar, da segunda é simples: o bolo é uma cópia de um bolo fechado, massa semelhante e também ele frito, chamado “berliner”, ou seja, de Berlim. Na capital germânica, encontra-se um recheio de compota de fruta no interior, mas no exterior é totalmente homogéneo. Cortado e recheado com creme pasteleiro, parece que só nós. E continuamos a produzi-lo, apesar do desmazelo do emprego dos malditos “mixs”, que atiraram a nossa tão original pastelaria para as catacumbas, prisioneiras dos grandes fabricantes de massas, recheios e preparados. As pastelarias, por sua vez, mesmo muitas das que reclamam “fabrico próprio” nos seus toldos, mais não fazem que levar mixs ao forno. Parecemos tolos.

Nem tudo está perdido

Descanse quem pensa que o meu discurso vai azedar, nada disso. Como sempre e em tudo na vida, fixo-me nos bons exemplos e nas coisas positivas. A venda dos bolos na praia, essa é que está comprometida porque parece que têm de andar em embalagens herméticas além de outras exigências, em que prefiro não me deter. Sobre os bolos, mesmo os mais triviais temos a Norte um luzeiro seguro, de seu nome Francisco Gomes, proprietário da pastelaria Colonial, em Barcelos. Dedica-se a alta pastelaria, do mais alto nível, e, imagine-se, preocupa-se muito com os “clássicos” e triviais bolos da nossa história. Pão-de-ló e bolo rei, são assunto sério e recorrente na fantasia do grande pasteleiro. Sobre os dramas dos mixs e da perda de interesse da maioria em relação por exemplo, ao verdadeiro bolo de arroz, deu em que hoje numa pastelaria um queque e um bolo de arroz tenham o mesmo sabor horrível e a mesma gordura insuportável. Quem se lembra de comer um bolo de arroz a sério? O nome deve-se à utilização de um terço de farinha de arroz e dois terços de farinha de trigo e é tão simples de fazer como de cozer. Ainda por cima, pode fazer-se em casa! Acabados de fazer e arrefecer, são gloriosos, não é preciso ir muito longe para conseguir a receita original, qualquer pesquisa na net lhe dá a configuração certa. Aliás, de todos os bolos de mão vendidos normalmente nas pastelarias só o pastel de nata não se pode produzir num forno doméstico. Não pode? Não, não pode, a cozedura tem de acontecer entre 380 e 420 graus centígrados, quando os fornos domésticos não passam dos 300. É claro que se faz, mas mal, mas já sabemos que isso deixou de importar. Não são os supostos concursos do melhor pastel de nata que o estão a salvar; havia que ser pedagógico e atento. A massa folhada tem de estar estaladiça e coesa, impecavelmente cozida, enquanto o recheio tem de ficar com uma textura ligada mas quase liquefeita. Em vez disso, são-nos servidos pudins, prolongar o tempo de cozedura é a única forma de nos fornos menos potentes se conseguir cozer a massa.
De repente, vem-me o pregão da Maria dos Bolos à mente: “Olhá bolinha de Berlim fresquinha”. Tenho de ir.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Michelin 2015: Portugal atinge a excelência (NM)


O guia vermelho Michelin 2015 para Portugal e Espanha acaba de ser anunciado, com uma extraordinária notícia para o nosso país: José Avillez é o primeiro chef português a alcançar duas estrelas, com o seu Belcanto. Outros dois portugueses, Leonel Pereira e Pedro Lemos, acrescentaram uma estrela cada um à constelação nacional. Estamos no bom caminho.

A provecta idade de 114 anos não tolhe os movimentos nem o respeito do mais famoso guia de restaurantes do mundo e continua a provocar o mesmo suspense sempre que se aproxima a data de lançamento em cada país. Claro que as coisas mudaram muito, o mundo hoje é todo um outro, em todas as frentes. As comunicações evoluíram como sabemos e é impossível conter a vaga gigante de "novos críticos" que invadiu o ciberespaço. Se ir a um restaurante famoso é notícia, publicar uma crítica é muito mais. A essência e potência de ferramentas como TripAdvisor e Zagat está de resto na aparente democratização e efeito directo de "ajuste de contas" que permite; da necessidade absoluta de impor uma opinião, por injusta e disparatada que seja. Há fóruns de partilha de opinião e avaliação de restaurantes espalhados por todo o mundo, nos quais mal ou bem vai-se construindo conhecimento em suporte virtual. E há blogs mais ou menos responsáveis, que vão tacteando os princípios do jornalismo e dando notícias às comunidades de seguidores que os seguem. Hoje googla-se o nome de um chef ou restaurante e encontra-se informação abundante, parte da qual até dispensamos, tal o nível particular e detalhado a que se chega. Acabo de fazer isso eu próprio com o nome de Bernard Loiseau, para ver chapado o que não me interessa, de todo em todo, para mais na wikipedia, o assunto do seu suicídio em 2003, supostamente cometido quando leu no Le Figaro a notícia de que iria perder o estatuto de três estrelas Michelin, que detinha desde 1991. Paul Bocuse afirmou então que o que desmoralizou o seu pupilo dourado da Borgonha foi primeiro a descida de 19 para 17 valores no guia GaultMillau, depois um par de artigos de jornal demolidores sobre a sua cozinha e a forma como se tinha perdido de si próprio enquanto chef, criando uma máquina empresarial muito pesada que chegou a estar cotada em bolsa. Nem a sua fantástica e prodigiosa companheira de vida, Dominique, mãe dos seus três filhos conseguiu demovê-lo da ideia fixa de que ele tinha sempre de ser o melhor, nunca aceitaria cair. Os detalhes sucedem-se para quem quiser saber mais, mas o que na altura se lavrou por toda a parte e o que ainda hoje aparece no google é que Benard Loiseau pôs termo à sua vida por recear perder as estrelas Michelin. Para que serviu e serve este tipo de informação? Para acicatar ainda mais a animosidade contra o guia vermelho. Que é o guia que todos adoram odiar.
Foi um privilégio enorme para mim coordenar a edição de Abril de 2012 da revista Evasões, inteiramente dedicada ao guia Michelin. Contámos com a colaboração da equipa Michelin sediada em Madrid, onde estive com o então director do Guia conjunto de Portugal e Espanha, Fernando Rubiato e que nos dá a entrevista central do trabalho. Tive oportunidade de conversar desassombradamente sobre a aflição que eu levava no alforge, creio que em nome dos portugueses. Por que não tínhamos mais estrelas, por que era tão mais fecunda em estrelas Espanha que Portugal, e algumas outras questões. Há um momento da entrevista que recordo com nitidez, aquele em que Rubiato me diz que que a Michelin é como um navio de grandes dimensões; segue com segurança a rota programada, o que é bom, mas tem dificuldade em mudar rapidamente de rota o que pode ser menos bom. Na conversa revelou conhecer a fundo o nosso sistema de comunicação informação, em particular blogs, fóruns, revistas, guias e até programas de televisão. O meu sentimento nacional foi particularmente interpelado quando ouvi o director do guia ibérico dizer que a informação que aparece é contraditória. "O melhor para uns é o pior para outros". Não valia a pena refutar, ele tinha ali à mão um arquivo com tudo o que por cá se dizia e publicava. Entristecido, tive de lhe dar razão, perante os factos não havia argumentos. Cingiu o nosso historial estrelado desde 1974 até aos nossos dias - lista que publicámos na dita edição da Evasões - demonstrando como o tempo acabava por dar razão à avaliação feita. Mais que premiar um restaurante, avalia-se a solidez do seu projecto e, assim, garante-se a durabilidade da distinção. O que está no prato é determinante, mas um restaurante deve ser avaliado também e sobretudo como empresa. Os inspectores Michelin têm, todos eles, pelo menos 6 anos de experiência de direcção hoteleira. Nenhum é jornalista nem crítico gastronómico. E todos são empregados do guia em regime de exclusividade. A estupefacção com que em Portugal temos recebido ano após ano a lista dos estabelecimentos distinguidos com estrelas no guia Michelin, apesar dos contornos de injustiça, tem provavelmente razões por detrás que nos escapam. Os restaurantes podem e devem perguntar a Madrid o que se passou e quais as razões de uma despromoção ou de uma ausência, no entanto há que dizer que de cá raramente se liga para lá. Podem e devem ligar se nunca foram visitados e pretendem mostrar os seus trunfos culinários e as suas casas, dizendo explicitamente que querem ser avaliados; não tem sentido a falta de coragem que dizem sentir os proprietários de restaurantes e os chefs a quem digo isto. Acreditam ou não no seu valor? E quem visita enquanto cliente determinado restaurante também pode e deve dar o seu feedback para a Michelin. Um imperativo de consciência a cumprir por quem sente a necessidade absoluta de contribuir para uma melhor leitura internacional das casas portuguesas. Como se faz? Simples. Ir ao site viamichelin.com e enviar a sua opinião, identificando-se claramente e deixando os contactos. Fica desde já a saber que se enviar opiniões negativas, está em linha com a maioria das pessoas que dá feedback para a Michelin; raros são os que enviam retorno favorável sobre uma casa. Lamentável, mas verdade.

Estamos em festa

O navio grande de que falei atrás parece finalmente ter orientado a sua rota para os valores nacionais. José Avillez vê coroado o trabalho notável da sua equipa com a segunda estrela Michelin, dado duplamente inédito, por se tratar de um chef português e de um restaurante lisboeta: o Belcanto. Quem conhece esta casa sabe que é lugar mágico, de serviço irrepreensível e de uma qualidade que não se conhecia de mão portuguesa. Esteve para acontecer no ano passado mas o tal "navio" achou que não havia condições para ancorar. Ninguém desarmou, antes se trabalhou com mais afinco, pude atestá-lo e dá-lo a atestar num almoço com o amigo José Peñin, decano dos críticos espanhóis de vinhos, em Junho deste ano. Grande grande casa está aqui, proibido falar de sorte, falemos antes de trabalho. Os outros biestrelados nacionais, Vila Joya (Galé) e Ocean (Vila Vita Parc, Alporchinhos), com vista um para o outro através da grande baía de Armação de Pera, estão sólidos nos respectivos postos. Penso contudo que é inevitável a terceira estrela para o Ocean no próximo ano, já que neste a teimosa âncora decidiu não se soltar. O trabalho de sabor e gosto de Dieter Koschina no Vila Joya preenche-nos talvez mais, mas o primor de Hans Neuner no Ocean é de ir às lágrimas; já me aconteceu.
Depois é só de uma estrela que falamos. É comovente o extraordinário desempenho de Leonel Pereira no São Gabriel, em Almancil. Alguns meses após a sua chegada àquela casa, e sem inspector algum a ter visitado, perdeu a estrela. A explicação nada tem a ver com o chef, o que aconteceu foi que a empresa mudou de mãos, o que na lógica Michelin implica sempre pelo menos a reserva para o ano seguinte. O que posso dizer é que estão melhores que nunca, São Gabriel e Leonel. É glorioso ver o algarvio a vencer na sua terra, estrela portanto mais que merecida. Definitivamente, a marcar na agenda. Já que estamos no Algarve, fazemos a vénia a Henrique Leis (Almancil), brasileiro biónico e mestre da boa disposição, por manter a sua estrela e pela felicidade que transmite a todos os que o visitam, e a Willie Wurger (Vilamoura) pela tenacidade com que diariamente enfrenta a clientela do seu Willie's. Reconheço contudo que cheguei a temer pela queda da sua única estrela. Não perdeu, ainda bem.
Benoit Synthon, chef do madeirense Il Gallo d'Oro, restaurante do Cliff Bay, manteve a sua estrela, bem segura e alavancada na equipa excelente que soube montar tranquilamente. É a terceira vez consecutiva que lhe é atribuída, e agora, que o grupo se prepara para abrir uma nova unidade em Lisboa, vai uma vez mais ser posto à prova. Miguel Laffan continua com o seu pensamento muito estruturado e uma autonomia de trabalho notável, contrariando a lógica de desterro que muitos vaticinavam. O L'And Vineyards (Montemor-o-Novo, está definitivamente na calha, a bater à porta da consciência dos muitos alentejanos teimosos que insistem em resistir à visita. Não é favor nenhum, conhecer a cozinha de grande recorte técnico e de sabores profundos do chef cascaense, advogado indefectível da cozinha de proximidade e de raízes. A Grande Lisboa viu confirmadas as estrelas do Eleven e Fortaleza do Guincho, com que é preciso estar de acordo, Joachim Korper é o mestre de nível galáctico que todos os dias garante luxo à mesa, com o Tejo ao fundo, assim como Vincent Farges no Guincho, com o oceano inteiro. Fica, a propósito e mais uma vez, a segunda estrela por dar. Melhor do que ali se faz é impossível, só não concorda quem não conhece, o que se resolve facilmente, tal a proximidade da capital. O Grande Porto também marcou e como! Ricardo Costa, no seu glorioso reduto de Gaia que dá pelo nome de Yeatman, balaustrada mirante sobre o Porto e a Ribeira. Continua grande apóstolo do produto e defensor de uma simplicidade de sabor que põe nota fortíssima na cozinha. Está para durar e, quem sabe, crescer para a segunda, esta estrela boa. Pedro Lemos conseguiu a sua primeira estrela, para o restaurante com o seu nome, na Foz Velha. Ao contrário do que tem sido escrito não é a primeira estrela Michelin do Porto, há que recordar o Portucale, ainda aberto mas já sem estrela, e o Garrafão, em Leça, que já não existe. Pedro Lemos é possuidor de um enorme talento e tem a escola de Aimé Barroyer, com quem esteve mais de seis anos no Pestana Palace, em Lisboa. Liberdade criativa, técnica irrepreensível e assemblagem de pratos de perfil moderno, como se pretende e impõe. Termino a elencagem com o Casa da Calçada (Amarante), para destacar o fabuloso desempenho de Vítor Matos na cozinha. Viu reconhecido o seu trabalho ao manter a estrela, espero que a empresa lhe dê sempre condições para fazer o seu trabalho com serenidade e a felicidade que todos queremos ver no rosto de quem trabalha na linha da frente da nossa alta cozinha. Apesar das vicissitudes e do ambiente de crise em que estamos imersos, estamos melhor que nunca. Agora é não parar.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

António Saramago: pronto para mais 50

(Entrevista Feita em 2013, a propósito dos seus 50 anos de carreira)

António Saramago é um dos mais experientes enólogos do país. Pertence ao grupo dos profissionais intranquilos que têm criado vinhos de vanguarda, aplicando ao mesmo tempo o seu talento no transporte para os tempos modernos. Globalização, internacionalização, e sobretudo a ideia de que os vinhos portugueses têm de valer por si mesmos, seja em que circunstâncias for, são assuntos deste homem singular, que acaba de celebrar, aos 64, 50 anos de carreira.

Ao contrário dos cozinheiros, os enólogos não acompanham os seus vinhos até ao momento final do consumo. Como funciona esta profissão peculiar?
Totalmente orientada para o consumidor, mas com a assinatura do enólogo. Antigamente, os vinhos eram muito feitos ao gosto de cada enólogo, quase para seu próprio consumo. Os grandes vinhos, contudo, precisam da ratificação pelos grupos que consideramos nossos clientes, ou colecionadores.

Mas hoje vemos muitos vinhos feitos especificamente para certos mercados.
É verdade, mas a esses vinhos eu não consigo chamar vinhos da minha vida; são vinhos que faço para clientes e para mim próprio, enquanto técnico especializado de enologia.

O que é para si um grande vinho?
São os vinhos que conseguimos beber agora, e que duram 10, 20, 30 anos, sempre a dar-nos prazer.

Temos mais grandes vinhos hoje do que antigamente?
Isso não sei. Alguns dos vinhos que tive o privilégio de fazer dão-me ainda hoje, volvidos 20 anos ou mais, muito gozo a beber e sinto que ainda estão para durar. Devo dizer, contudo, que um certo grupo de vinhos estrangeiros aclamados pela crítica como grandes vinhos não vão durar nem uma década!

Gostava que a sua assinatura fosse sentida por quem prova os seus vinhos mais importantes?
Eu conheci grandes enólogos portugueses, grandes senhores do vinho, para quem, como para mim, o vinho é um produto muito nobre. A nobreza tem de perdurar. Todos eles têm um cunho muito próprio, que imprimem aos seus grandes vinhos. É claro que eu também gostaria muito que o meu cunho fosse sentido por quem bebe os meus vinhos melhores.

Como definiria o seu estilo de vinho?
É muito simples! (risos) Muita complexidade, estrutura bem trabalhada e boa acidez. Tudo num conjunto equilibrado.


O princípio

Como nasceu para o vinho?
Nasci profissionalmente no dia 2 de Agosto de 1962, numa grande empresa que foi também uma grande escola, a José Maria da Fonseca, em Azeitão. Tive dois grandes mestres, António Soares Franco, formado em Montpéllier, e Manuel Vieira, professor do Instituto Superior de Agronomia (pai do enólogo Manuel Vieira). O meu pai era o chefe do armazém, operando também como coordenador das operações e movimentações na adega. Tive o privilégio de trabalhar com Joaquim Costa, até 1973, altura em que ele saiu da empresa e eu, com 25 anos apenas, casei. Fiquei então eu a chefiar a enologia da casa, com o apoio científico de Manuel Vieira.

Sempre foi inequívoco que seria enólogo?
Fiquei ainda algum tempo no laboratório, a fazer as análises que ainda hoje faço, estava, então à frente da empresa o engenheiro António Francisco Avillez, que achou que eu devia ter uma formação em enologia. Achavam que eu provava bem. Fui então para a Universidade de Bordéus em três anos sucessivos. Foram meus colegas algumas das nossas actuais referências de enologia e aprendi com os melhores mestres. Pascal Ribéreau-Gayon, Émile Peynaud são alguns dos professores com quem estive cara a cara.

Não havia por cá nessa altura a figura do enólogo.
De facto, não havia. A profissão de enólogo só apareceu mais tarde no nosso país.

Continua a identificar-se com a escola francesa?
Absolutamente, e estou convicto de que continua a ser a plataforma de formação dos grandes enólogos.

Mas também se ligou a um professor da Califórnia.
É verdade, conheci o professor Roger Bolton, da Universidade de Davis, no final dos anos 70, quando ele estava a ajudar a montar o curso de enologia na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Organizei uma prova vertical de moscatéis de Setúbal da JMF para o professor Bolton, que ficou totalmente siderado com a qualidade dos vinhos. Quis provar moscatéis dos anos de nascimento do seu pai e da sua mãe. Emocionou-se muito quando provou o vinho da idade da mãe, e mergulhou nele o lenço, para que, de volta aos EUA, ela pudesse cheirá-lo, já que não era possível bebê-lo.

A relação mantém-se?
Continuo a achar que é um dos grandes enólogos do mundo. Estive com ele lá na Califórnia em 2005 e somos bons amigos, comunicamos muito.

O vinho é uma ciência?
Tem uma componente científica, sem dúvida, mas tem muito a ver também com a sensibilidade.

O seu filho mais novo seguiu os seus passos.
Ele sempre teve uma queda grande para a enologia e acho que hoje é um bom enólogo, com autonomia e assinatura já vincada nalguns dos seus vinhos.


Os primeiros clientes

Pode considerar-se a Herdade de Coelheiros como o seu projecto inicial enquanto consultor?
Em 6 de Abril de 1992, abracei com o senhor Joaquim Silveira o projecto da Tapada de Coelheiros. Foi o primeiro projecto de raiz que eu fiz no Alentejo. É fundador e estruturante tanto na minha carreira como também no próprio historial do vinho alentejano.

Foi bastante inovador.
Dizia-se que era impossível fazer um bom chardonnay no Alentejo, mas nós conseguimos. O Sr. Silveira era um grande conhecedor dos grandes vinhos do mundo e queria para os seus tintos um perfil de Bordéus, para os brancos o de Borgonha. Tinha, além disso, uma colecção muito grande.

Diz-se que Coelheiros foi o primeiro “château” do Alentejo
O que me foi pedido foi que fizesse um vinho no Alentejo, mas que não tivesse nada a ver com os vinhos que se faziam no Alentejo. Plantámos castas estrangeiras e fizemos os vinhos seguindo técnicas radicalmente diferentes das praticadas na região.

A Cooperativa de Granja é, no entanto, um projecto mais antigo.
Em 1978, a JMF comprava uvas em várias partes do país e conheci o eng. José Leal Segurado, a pedido de António Soares Franco, porque pretendia vender-nos uvas da sua produção. Havia, Moreto Preto, Alfrocheiro, Trincadeira, etc, tudo de qualidade muito boa. Ele estava ligado à Cooperativa Agrícola de Granja e logo que passou a tomar conta da cooperativa, em 1982, convidou-me para trabalhar com eles enquanto enólogo consultor. Comecei em 28 de Abril de 1982.

Nasceu uma marca que viria a ser campeã mundial.
Criámos uma marca, Terras do Suão, com muito êxito. O primeiro engarrafamento acontecu em 1982 e foi o primeiro vinho alentejano a ter estágio em barrica. Não havia nenhum grande restaurante que não tivesse o vinho.

Foi esse o vinho que o ligou a Joaquim Silveira?

Sim. Ele conheceu o vinho no Gambrinus, onde ia almoçar à sexta-feira. O escanção Francisco Gonçalves deu-lhe o vinho a provar e logo ele se pôs em contacto comigo.

O que distinguia esse vinho dos outros?
Esse vinho era muito especial, era o resultado de uma escolha exaustiva dos vinhos produzidos a partir de talhões muito específicos.

Nasceu assim uma relação verdadeiramente estruturante.
Foi a pessoa que mais valorizou até hoje o meu trabalho. Foi sempre um grande amigo, transmitindo-me uma confiança sem limites.

Quem eram os seus colegas de profissão na altura?
No Alentejo, lembro-me perfeitamente de João Portugal Ramos, que sempre achei que iria muito longe e não me enganei. O professor Colaço do Rosário. Mais tarde, Paulo Laureano, João Melícias, António Ventura, Luís Duarte, Pedro Baptista Rui Reguinga e outros, todos com talentos invulgares.

Mantém boas relações com todos?
Infelizmente o professor Colaço do Rosário já não está entre nós, mas a verdade é que eu tenho boas relações com todos os meus colegas de profissão.

Em sua casa, vive-se o vinho?
O meu filho Nuno gosta e prova bem. Seguiu o curso de farmácia, e tem tido muito sucesso. O António fez o ISA e seguiu enologia, tem um gosto requintado e interessa-se por conhecer. Está de resto a fazer vinhos muito interessantes.

Gosta dos vinhos que o seu filho faz?
Gosto. E reconheço neles uma mesma forma de viver e conceber o vinho. Temos muitos pontos em comum.

A família é um grande apoio.
A minha mulher foi a mãe e pai dos meus filhos, ao longo de períodos em que eu, por força da profissão, não conseguia estar muito tempo em casa.

Começou um projecto no Brasil
Sim, e estou bastante entusiasmado com ele. Ainda está no início, mas creio ter um futuro brilhante.

Entretanto, tornou-se produtor de vinho.
Quando eu estive na Califórnia, deparei com essa realidade. É normal, quando os enólogos atingem determinado estatuto, darem o passo da autonomização. Há alturas na vida em que temos de tomar as nossas opções. A certa altura, quis criar os meus próprios vinhos, até já a pensar no meu filho, que entretanto já tinha terminado a sua licenciatura.

E tem sido dedicado à sua região.
Sim, muito. Gostava que os vinhos da Península de Setúbal gozassem da reputação das nossas outras regiões de topo. E temos muitas possibilidades de conseguir isso.

O Alentejo também tem estado na agenda.
Sim e penso que estou a fazer vinhos novos, propostas também novas. Caso do Porto da Bouga e do Dúvida.

Os moscatéis continuam a apaixoná-lo?
Os grandes moscatéis do mundo ainda são os de Setúbal. Tenho consciência de que os melhores de todos estão na José Maria da Fonseca, mas tenho produzido vinhos com a minha assinatura em que acredito muito.

domingo, 17 de agosto de 2014

Um nepalês que é nosso

Tanka Sapkota é o proprietário e chef do restaurante italiano Come Prima, em Lisboa. Lutador de fundo com uma invulgar veia criativa e uma força capaz de mover o mundo, oferece todos os dias o melhor que sabe, e sabe muito. Nasceu no Nepal mas é português de coração, dizemos nós.

Movimenta-se como um bailarino por entre as fiadas irregulares de mesas, cadeiras e frapés que pontuam o que é um dos melhores restaurantes italianos de Lisboa. De vez em quando desaparece para dentro da cozinha ou vai fazer uma qualquer operação no forno de lenha que marca logo quem entra no seu restaurante. Depois sai que nem um foguete, escada cima, degraus dois a dois, para atender a alguém que pediu uma boa grappa para terminar a refeição em beleza. Seja onde for, Tanka Sapkota aparece de repente, com um sorriso impossível de desmontar, os olhos de uma criança que recebe o brinquedo com que sonhava. A casa é a Come Prima, que vagamente quer dizer "como dantes". Menos vagas são as vozes de Marino Marini, Domenico Modugno ou Mario Lanza que mesmo sem soar no sistema de som nos namoram insistentes até ao fim da refeição. Além da agora óbvia "Come Prima", canções como Quando Quando Quando, Guarda che Luna, e Volare, compõem um imenso repertório do final dos anos 50 que espantosamente nos chegou intacto, mesmo no tempo em que o país não dava propriamente as boas vindas ao estrangeiro. Canções eternas que gritam Itália, paixão, toalhas aos quadrados e que fazem de qualquer massa "aglio e olio" parecer iguaria dos deuses. Sapkota é cuidadoso neste aspecto, não impõe aos seus clientes habituais o suplício de ouvir sempre as mesmas músicas quando escolhem a sua casa para comer. Nos dias especiais é ao contrário, então celebra-se bem a vida neste recanto lisboeta da Pampulha, perto das Janelas Verdes. Foi especial o passado dia 5 de Junho de 2014. Tão especial que que se ouvia "Come Prima" cantado e tocado ao vivo através de todo o restaurante. Sapkota estava em festa, com a atribuição do diploma de "La Verace Pizza Napolitana", certificando as pizzas como autênticas e verdadeiras, feitas ao estilo napolitano. Massa, ingredientes e assadura, tudo a preceito, como mandam as regras. A sua mulher Rita oficia diariamente no Come Prima ao lado do marido e naquele dia estavam também a filha Anjali (8 anos) e o filho Adarsha Pratik (6 anos) estavam ali a viver a festa e a vitória. Cerca de 18 anos depois do seu primeiro emprego em Portugal, Tanka - Giovanni, nome italiano que a certa altura da vida adoptou - tem um palmarés notável e um percurso de que pode estar orgulhoso. Especial entre especiais.

A 13 mil quilómetros do berço

Tanka Sapkota nasceu em Damek, no Nepal, no dia 15 de Janeiro de 1974. Tanto a sua mãe, Kalawati (67 anos), como o seu pai, Jaguputi (86 anos) estão ainda vivos, tiveram quatro filhos; Tanka é o segundo mais novo, mesmo assim 8 anos mais velho do que o benjamim, Yogesh. Este último também está radicado em Portugal e gere a Casa Nepalesa, restaurante étnico de sucesso e qualidade assinaláveis. A sua infância foi feliz, numa paz que considera total. O nosso homem é hindu, mas tem grande admiração pela figura e talante de Siddartha, o príncipe-Buda, também ele nascido no Nepal, em Lumbini, cerca de seis séculos antes de Cristo. "No Nepal vivemos lado a lado, hindus e budistas, em total tolerância", explica. É verdade que sempre que se pergunta a alguém onde nasceu Buda, a maioria responde China, outros Índia, mas quase ninguém Nepal, terra de prodígios, onde o próprio cristianismo pode ter ido buscar muitos dos seus fundamentos. Certo é que não foi em fuga que Tanka decidiu partir para a Alemanha. Havia qualquer coisa dentro que o desinstalava, desde 1992 pelo menos, altura em que abandonou os estudos de Direito, que o seu coração o levava à moção repetida de sair donde estava. Em Stuttgart foi ter com um italiano amigo de seu pai. Rapazinho de 18 anos apenas, queria trabalhar e, perante o ultimato do irmão mais velho, decidiu abandonar a universidade e tentar a sorte na Europa, junto de um homem que de certa forma, foi como um pai. Estudou alemão e teve o primeiro contacto com a cozinha italiana, começando, como nos filmes, a lavar pratos num restaurante. Um dia pôs a mão na massa e percebeu que conseguia fazer dela qualquer coisa, com bons resultados. Em três tempos, estava feito um verdadeiro pizzaiolo.
Quis o destino e a necessidade de regularizar a sua situação que veio até Lisboa em 1996. Chegou e gostou do que viu, parecia-lhe ser lugar onde podia ser feliz e criar raízes. Conseguiu emprego no restaurante Trattoria assim que perceberem que ele dominava o segredo das pizzas e sabia fazê-las à mão. Por ali ficou por três anos de trabalho intenso, sem intervalos, mas sentia-se realizado; o seu esforço era reconhecido a admirado. Em 1998 teve de ir até ao Nepal para o casamento do seu irmão e Cupido fez das suas. A irmã da noiva, Sita - ou Rita - fê-lo  regressar apaixonado para Portugal. Começou a sua vida de herói em Lisboa, acabando por abrir o seu primeiro restaurante em Outubro de 1999, o Bella Italia. Definitivamente, Lisboa era a sua cidade e parte dela era sua, dado o grande êxito da sua primeira ventura empresarial.

Instalar o amor e o ofício

O tempo dos casamentos combinados já tinha então passado, mas Tanka Sapkota - Giovanni - foi sempre pessoa de princípios. Timidamente começou uma troca de cartas com Rita, tentando encurtar a enorme distância, quase meio mundo, a que se encontravam. Foi plenamente correspondido e a intenção de casar não se fez esperar, mas para os seus pais Rita era ainda demasiado jovem para casar. Esperaram, assentes mais e mais na troca epistolar, até que vem o sinal positivo. Casaram no Nepal em 2002, um ano depois de se mudar para o Come Prima, no local onde ainda hoje se encontra. Para se aperfeiçoar, escolheu Itália, primeiro um pequeno estágio no Tripini, em Orvieto, depois um mês e meio no Gambero Rosso, em Bari. Deu-se a inflexão profissional que Giovanni sabia que tinha de acontecer, passando a dedicar-se ao receituário clássico italiano e à cozinha mais elaborada de matriz mediterrânica. 2009 é por isso o ano da autonomização definitiva do chef Sapkota, permitindo-se chamar verdadeiramente seus aos pratos que oferece no Come Prima. O que hoje se chama cozinha de autor.
No tempo da trufa branca de Alba, entre Outubro e Janeiro de cada ano, ano após ano recebe o produto na sua cozinha, que processa como ninguém. No passado houve alguns cozinheiros que ousaram propor menus de trufa branca, mas hoje apenas Tanka "Giovanni" Sapkota tem uma oferta consistente, com que podemos contar.
Antes da certificação - mero pro forma a que o cozinheiro quis atender - já Sapkota tinha todo um trabalho de ensaios com farinhas, produzindo por exemplo fermento natural, para melhorar a qualidade das suas pizzas. Está a desenvolver neste momento um trabalho de grande valor, com produtos tradicionais portugueses, em busca da frescura e combinações únicas que a nossa cozinha consegue oferecer. E está com a ideia fixa de plantar um olival com as nossas variedades... no Nepal. Quer produzir azeite na sua terra natal e está convicto de que vai conseguir. Alguém se atreve a duvidar?

(Notícias Magazine #1160, de 14.Ago.17)