quinta-feira, 3 de outubro de 2019

O mais português dos bolos

(pastel de nata antes de ir ao forno a 380-420ºC)

As receitas fundadoras do pastel de nata concentram-se no creme que preenche a pequenina taça de massa, pouco ou nada sendo dito acerca desta última. O mesmo acontece com o açúcar, a cozedura e o acabamento. Preciosismo, dirão alguns e com razão. É que independentemente dos detalhes técnicos não há português que não reconheça o pastel de nata como seu. E ninguém duvida de que é 100% português.

O génio nacional que ao longo dos tempos produziu, sem inventores nem autores identificáveis, o prodigioso receituário a que nos habituámos a chamar cozinha tradicional portuguesa fixou autênticas glórias. Fialho de Almeida escreveu a propósito do prato nacional que era um produto do génio colectivo, “ninguém o inventou e inventaram-no todos”. O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao pastel de nata e à farta e vasta pastelaria lavrada nos livros que andaram outrora dentro e fora dos conventos. É de resto graças às oficiantes religiosas não residentes - só as mais abastadas podiam permanecer como internas - que os manuais se foram consolidando, arregimentando homens e mulheres da vida secular. O conhecimento, segredos, receitas e técnicas cresceram em paralelo nos mundos secular e religioso, com o mesmo fim de criar receita para o funcionamento sustentável das casas.
Quando por decreto são extintas as ordens, expropriados todos os conventos, expulsos e perseguidos os religiosos, os muitos pequenos negócios entretanto criados subsistiram, ainda que sob rigorosa vigilância do estado. Aconteceu em 1834, com os efeitos devastadores que se conhecem. Em 1837 é criada a Real Fábrica dos Pastéis de Belém, perto do mosteiro dos Jerónimos, com loja adjacente à operação de refinação de açúcar. Servia-se como hoje se serve, o bolo juntamente com açúcar refinado e canela, para temperar a gosto. O negócio do açúcar estava em expansão e o recém-criado bolo era instrumento valioso de promoção. Quando se interrogar acerca da disponibilização de um pacotinho de açúcar, outro de canela, juntamente com a caixa de pastéis de Belém, a razão é essa. A receita, essa, já viajava alegremente pelas casas fora. E pese embora o facto da autoria ser impossível de fixar, há fortes indícios de que a saga do pastel de nata tenha sido fundada no séc. XVI pela infanta Dona Maria, neta de D. Manuel I, filha de D. Duarte e dada em casamento ao terceiro duque de Parma, Piacenza e Guastalla. Está nesse livro a receita dos pastéis de leite. O copo do pastel pode bem ter já sido feito de massa folhada originalmente, o grande mestre francês Paul Bocuse deixou claro que a criação aconteceu no séc. XIII. Sabemos contudo que o trabalho da massa folhada, ainda que tosco e sem intenção específica de servir de base de pastelaria, remonta aos tempos luminosos do Egipto e da Grécia. Uma vez mais, o fenómeno popular extingue a toda e qualquer ideia de fixação da autoria; é de todos, como tudo o que é fundador. Os pastéis de Belém escudaram-se sempre no conceito oposto, o do segredo. Ainda hoje existe a sala do segredo, longe dos olhares de todos, e a receita é conhecida apenas de duas pessoas. A comunicação é a mesma de sempre e diz “cuidado com as imitações”, mas em rigor um pastel de Belém não é um pastel de nata, mas um pastel… de Belém. Na cozedura é irrepreensível, nunca a menos de 380ºC, o copo fica crocante, o recheio quase líquido, que é uma custarda simples, também conhecida como creme inglês. É esse o postulado do bolo a que chamamos pastel de nata, descartando toda e qualquer hipótese de se fazer em casa, nos fornos domésticos, menos ainda as soluções ultracongeladas, supostamente regeneradas pelo calor incompetente dos fornos de convexão que grassam pelos cafés e pastelarias sem fabrico próprio. Infelizmente, é esse o pastel de nata mais frequente pelo mundo fora, mas felizmente é também um grande e eficaz embaixador da portugalidade. A diáspora portuguesa não o dispensa, e há belíssimos exemplos de pastéis de nata, processados a preceito e segundo as receitas mais importantes. Quais são? Uma de duas, de bases diferentes. Uma data dos anos 30 e é do eterno chef João Ribeiro, base de leite, farinha e calda de açúcar; a outra é quase a dual dessa e foi fixada nos anos 40 pelo grande Olleboma, António Maria Oliveira Bello e é candidamente baseada em natas.
O que é um bom pastel de nata, afinal? Basicamente, aquele que perdura. A pastelaria é hoje um luxo, mas nasce da arte da confeitaria, ou seja, transformação pelo calor do açúcar presente nos frutos, criando conservas naturalmente doces e ao mesmo tempo preservando o sabor original de cada fruta. Nasceu antes da extracção do próprio açúcar. Os romanos adoçavam a boca com frutos secos que mantinham nas suas despensas. Ainda estamos num período de relativa euforia do açúcar - até nos medicamentos há açúcar, para facilitar a toma - e já sabemos que temos de reduzir o consumo drasticamente. Mas até nisso o pastel de nata é esplêndido, com cerca de 90 calorias apenas por bolo, é o menos doce de toda a pastelaria. Como seleccionar o seu pastel de nata preferido? Escolha seis pastelarias e compre seis pastéis em cada uma. Guarde na despensa e vá provando em dias sucessivos. Seis pastéis de nata por dia, parece muito mas é um exercício muito bom para a família. Vai dar-se conta de como evolui em casa. Os melhores serão aqueles que mantém a estrutura, cremosidade e sabor. Um pastel é uma conserva e o pastel de nata é de todos o mais português. Boas experiências!

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