sábado, 2 de fevereiro de 2019

O omnívoro focinhudo que adoramos

Começa o ano chinês do porco e com ele a inevitável leitura agroculinária do mito popular que envolve o nosso amigo suíno. Não há antigos que não lhe tivessem feito as loas nem religião que não o tivesse amaldiçoado, e é de todos os animais sacrificiais o que melhor se adaptou ao gosto dos locais. Nem nós escapámos.

Há que dizer à cabeça que nem de propósito, o maior consumidor mundial de carne de porco é a China, arrebatando praticamente metade da produção em todo o mundo. Vive-se o momento de transição na astrologia chinesa, está aí o ano do porco, que reza o mito terá chegado atrasado na altura da distribuição dos doze anos e ficou com a que restava. Tudo o que é do porco demora tempo e permanece, é de resto a dualidade entre efémero e eterno que caracteriza o porco no curso da história da alimentação. Reza o inefável provérbio popular que um sabor tem cada caça, mas o porco cento alcança; A carne do porco é a carne mais saborosa. Por outro lado e talvez por isso mesmo, achamos que nos faz mal, estabelecendo a costumeira dialética maniqueísta de que nós humanos fomos sempre torpes em libertar-nos. Pelo sim pelo não, as religiões mais antigas proscreveram-na, ainda que com intensidade diferente. O Corão proíbe terminantemente o consumo da carne de porco e o todo o contacto com o animal. Maomé era ele próprio dissidente de uma linha de poder temporal que percebeu ganhar força junto do povo odiando o porco e vendo nele o diabo, o animal no qual incarnavam todos os espíritos impuros. Não surpreende por isso que o simpático mas temperamental quadrúpede pagasse as favas. Ser bipolar nunca lhe angariou grande fama, diga-se em abono da verdade e a obsessão em afocinhar tudo fê-lo descer abaixo da condenação rastejante imposta à cobra pelo processo do fruto proibido. Fica automaticamente feita a ponte para o mundo judaico-cristão, de onde vem não se sabe, apenas se especula. E não podemos esquecer que Moisés foi educado na norte faraónica do Egipto, onde o porco era Seth, o deus do mal. Claro que lavrou no Levítico, terceiro livro da Tora e parte fundadora do Antigo Testamento, que estava vedado o consumo de carne de suíno, assim como o contacto com os seus cadáveres. Os pés que tradicionalmente fazem parte do retrato do diabo não são mais que pés de porco, de unha dividida. Olhamos para o budismo e de repente em termos suínos até parece um oásis. Obcecados com o não-derramamento de sangue inocente, os clássicos do império do meio foram sempre tolerantes, num cenário contudo manchado pela lenda de que Buda morreu depois de consumir carne de porco estragada.
Todas as cozinhas do mundo civilizado reservam ao porco parte importante nos seus receituários mais clássicos. Surge por isso como pressuposto óbvio que o porco foi a primeira espécie verdadeiramente domesticada pelo homem, provavelmente no neolítico, entre 8 e 6 mil anos antes de Cristo. Entre o médio e o extremo oriente, num longo processo, ao deixar de se perseguir e comer o javali - marca dos tempos da era nómada - a espécie foi perdendo o pêlo e os dentes, oassando de “sus scrofa” a “sus scrofa domesticus”. É o porco tal como o conhecemos, numa diversidade extraordinária de raças e tipos que entretanto se foram definindo. Não há porco completamente escorreito, o sangue selvagem correr-lhe-á sempre nas veias, mas a forma como vive, come e se exercita é praticamente perfeita. O seu património genético é notável e exercitou-se ao longo de milénios na adaptação ao meio em que vive. Profundamente rústico e admiravelmente moderno. Apício (Séc. II d.C.) dedica-lhe no seu “de re coquinaria” uma sofisticada receita de leitão assado com massa seca, mel e vinho que se deve preparar na panela com louro fresco. Recheia-se o reco com o preparado logo que amolece, espeta-se para fechar e leva-se ao forno para assar. Dois mil anos não mudaram praticamente nada e a essência do tratamento dado ao leitão permanece. Pouco tempo depois de Apício, Plínio diz tudo ao postular que quando os animais cozinhados têm cada um sabor, a carne de porco tem cinquenta. O mundo grego clássico - Arquéstrato viveu e escreveu no Séc. IV a.C. - tinha uma dieta assente em cereais, mas nem por isso o porco deixava de pontificar no quotidiano de então. Infelizmente, coziam o leitão para a sua mantença, o que é uma dor de alma, apesar do momento não ser de criticar mas sim de sondar… Por outro lado, nas festas e momentos especiais, assavam no forno leitões previamente alimentados com mosto de uvas e recheados com ervas. Quem mais honra hoje o leitão no modo de assar em todo o mundo é a Bairrada, cuja preparação passa por barrá-lo com pasta de alho e pimenta. Nós também cozemos o porco, que seria dos nossos cozidos sem as entremeadas, as orelheiras e as papadas!
Perdemo-nos nos processos e tradições do acto em si quando olhamos a frio para uma matança de porco, nos tempos que correm tomamos partido sem saber das partes. O mundo gelou de um momento para o outro e aparentemente não quer mais saber do produto inteiro, seja porco, novilho, robalo ou polvo. Mas é aí que está uma das grandes glórias e explicações da cozinha portuguesa; segue desde sempre a lógica do produto inteiro, e nessa linha o porco é campeão. A matança é o momento sacrificial e festivo no qual tudo se entende. Nem que seja por curiosidade, há que chegar mais perto para entender de que se trata e para chegar ao esclarecimento do assunto que é a geografia e o ritual. Aprende-se, por exemplo, o que é o redenho, a grande bolsa gorda e fibrosa que envolve as vísceras e que de imediato se transforma em torresmos deliciosos; o precioso sangue, que se vai escorrendo para recipiente mexendo sempre para não coagular, dele se fazendo o sarrabulho, um clássico da mesa portuguesa. Na linha mais dura e fundamentalista, também se trabalha os bofes - pulmões - do porco, parte importante para perceber pratos como sarapatel. Ouvimos para nunca mais esquecer a estridência dos gritos do bicho preso em agonia, o que afasta muitos da festa da matança, é um lado que a ninguém agrada, mas os trabalhos intermédios são tantos que há que prosseguir com coragem até ao fim. No matadouro, os bichos são depositados e abatidos de véspera, para cumprir todos os requisitos de higiene e segurança e para que por exemplo as peças certificadas com indicação geográfica possam ser produzidas. Com a faceira - cabeça - do porto faz-se a salga imediata, de resto o mesmo tratamento que o chispe - unhas -, pernas e mãos, estes futuramente presuntos e paletas, respectivamente, após o competente trabalho do fumo ou do arejamento condicionado. Lombos, lombinhos, papadas e presa serão também extraídos e conduzidos ao destino programado, a economia do porco é virtuosa e não falha. Começa nesse instante também a fabulosa colecção de enchidos, ensacados, enguitados e peças de maior ou menor nobreza, e por que vamos pagar bom e merecido preço.
A matança é em si mesma rústica e não faz parte dos ritos urbanos que marcam a modernidade. O esclarecimento, contudo, uma pressão premente das novas gerações e da nova forma de olhar o produto. Os talhos apresentam os mapas dos animais, com as diversas partes, mas raramente mostram os cortes que aprendemos a provar nos restaurantes. Cachaço, bochecha e barriga, cada um com as peças secreto e pluma apensas, não aparecem. Chegamos junto do nosso talho favorito, pedimos para ver secretos do cachaço e da bochecha, e ou não estão disponíveis ou não entendem o que estamos a pedir. Só junto de um produtor responsável conseguimos deslindar o mistério, mas no fim vamos ter o enorme desapontamento de ver a peça crua imensamente gorda que pode ser o secreto da barriga. Claro que grelha bem, ela está cheia de gordura, aguenta o rigor das brasas sem problemas, mas pode não ser a carne boa que pensamos que estamos a dar aos nossos filhos à mesa de uma casa comercial. Por outro lado, quando nos damos conta da excelsa qualidade da peça única de que é feito um paio do lombo, e do imenso trabalho que comporta até chegar às nossas casas, admiramo-nos a ponto de achar o preço acessível. E há a ideia simpática da partilha, além da durabilidade; uma peça dá para muitos momentos, sem perda de qualidade. É imperativo ter tudo em conta, história, origem, e processamento sempre que avivamos brasas para receber um entrecosto, e perceber que o requinte de uma simples sopa de unto é tão grande quanto o de um lombo de porco assado com trufas. Cheguemo-nos ao porco, merece e merecemo-lo.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.