sábado, 25 de agosto de 2018

Figo, flor e tesouro

Entre Junho e Outubro, estamos na época do figo e nem sempre temos oportunidade de lhe fazer a correcta palpação, pelo que é, pode ser e representa na história da alimentação e nos costumes, nossos e do mundo. A atenção que lhe devemos transcende o gosto pessoal, é em si mesmo venerável. Tanto, que àquilo que nos agrada muito chamamos… um figo.

Se lhe disserem que o figo não é um fruto não acredite. Assim como também não deve acreditar que o figo é um fruto. Na verdade, a sua forma de pêra pequena, pele macia esconde uma panóplia de infrutescências, complexos de frutos e flores completas que nasceram para dentro. Cortamos um figo ao meio e damos com um matizado notável de filamentos, sementes e polpa numa combinação inconfundível. Antes de o abrirmos, vemos na base um pequeno orifício que é a porta de entrada para o imenso viveiro de ovários à espera de ser polinizado e ao mesmo tempo propagar-se pela natureza fora. Para quem olha para um figo e lhe retira a pele para o comer, sem nunca ter pensado na composição, não há problema algum. Continua a ter comportamento de fruto, rico em água e açúcar, delícia que na canícula tanto tira a sede como alimenta. Mas há novidades que transcendem a bizarria aparente de afinal ser uma flor de flores. A árvore que lhe está na origem é a figueira e foi domesticada há mais de 10 mil anos. A espécie em si - ficus carica - tem diversas declinações e tem uma linha temporal de evolução impressionante que remonta à idade da pedra. O Mediterrâneo é a principal zona inicial de desenvolvimento, de que retemos ao longo da evolução civilizacional uma importância grande para o fruto suculento em fresco, energeticamente poderoso em passa. Ao longo de milhares de anos o figo era isso mesmo, um fruto seco, rico em nutrientes. Era a dieta favorita dos gansos quando se preparavam para os longos voos migratórios, servia de bateria de longa duração e duração lenta. Cedo se chegou à conclusão de que a alteração fundamental estava na forma e função do fígado, por ficar anormalmente grande e muito gordo. É daí que vem a designação de “foie gras”, iguaria faraónica com que os romanos deram e trouxeram para a Europa, chamando-lhe “jecur ficatum”, que quer dizer o órgão alimentado a figos. Razão por que utilizamos o termo fígado para dar o nome ao órgão, ainda hoje. O nome anglo-saxónico é “liver”, o que apesar da etimologia um pouco incerta, significa o órgão da vida. Para os gregos, é hepar, prefixo que na medicina moderna denuncia relação com o fígado. A morte é declarada actualmente com a morte cerebral mas nos tempos antigos era o fígado o indicador-chave. Utiliza-se hoje a técnica conhecida como gavage para alimentar gansos e patos com milho ou ração para se obter o desejado foie gras, com preços altos no mercado.
Em Portugal o figo tem uma expressão preponderante, em relação ao resto da Europa. Temos as melhores condições edafo-climáticas para a produção de figos, o que nos coloca na linha da frente. No terreno a expressão do figo é grande, assim como as manipulações culinárias a que se presta. O famoso professor Vieira Natividade identificou 25 variedades de figueira na região de Alcobaça o que só por si é já um indicador da força com que o fruto escolheu terras lusas para brilhar. A que mais prezamos hoje é a do figo pingo de mel, assim chamado pela gota de glicose que exibe quando a maturação atinge o pleno e pela extrema doçura que mostra, a evocar sensações de mel e compota. Um dos efeitos imediatos dessa campanha doce é atrair abelhas e vespas, que se deliciam com o lauto manjar e ao mesmo tempo são convidadas a entrar e fazer a polinização das microflores que compõem o figo. A natureza e os seus prodígios, é caso para dizer. Igual prodígio é o que a sabedoria popular produz. Figueiras e amendoeiras são espécies importantes da paisagem do Algarve, e nos lares algarvios sempre houve figos secos e amêndoas. Por isso mesmo, sempre se fizeram, para consumo doméstico e como forma de conserva, queijos de figo. Iguais partes de figos secos, amêndoas e açúcar, um pouco de chocolate em pó, canela, erva-doce, raspa de limão e água, consoante a arte e os dotes culinários de quem oficia na cozinha, são peças deliciosas para ir consumindo. Há várias receitas disponíveis, e graças ao ponto estrada a que se leva a calda de açúcar de base, obtém-se uma massa moldável de que se faz bolas, tabletes, ou pequenos cilindros. Na variante fresca, cortar um figo em quartos e levar um a um à boca, deixando a pele é uma das grandes recompensas de estar vivo. Em saladas ou integrados em pratos funcionam como elemento integrador, reagem bem à assadura directa com azeite, grelham maravilhosamente numa chapa, sem mais e para quem tem a paciência de os afogar em natas ou crème-fraîche com lume muito baixo, produz uma glória quintessencial, de lamber os dedos. A cozedura lenta tem o efeito duplo de evaporar a água contida na polpa do figo e impregná-lo com as natas. Findo o processo, depois de passarem pelo frio os figos ficam uma espécie de pudim, para comer à colher. Secos e laminados, regados com mel em cima de um gelado animam todos e puxam a abrir uma garrafa de champanhe. Servidos em canapé com queijo de cabra configuram delícia com um Porto branco seco, enquanto com tomate cereja gostam de um bom Sauvignon Blanc. Está ao rubro o figo por cá, a epopeia está longe de estar terminada.

(in Revista Doze)

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