domingo, 21 de janeiro de 2018

Morreu o maior cozinheiro de todos os tempos

Sobreviver a Paul Bocuse

Figura incontornável da gastronomia mundial e não apenas francesa, representa na perfeição o paradoxo entre escola e autodidactismo, resolvendo-o de forma sublime ao exceder-se a si próprio na majestade e no conhecimento. Não há quem não tenha pelo menos uma pequena história com o grande chef, que até morrer saudou sempre os novos e o novo. Morreu na noite de 20 para 21 de Janeiro, na mesma terra que o viu nascer, em Colonges, perto de Lyon.

É impossível estabelecer uma cronologia da alta-cozinha francesa sem colocar o nome de Paul Bocuse em todas as entradas. Assim como não é possível não nos apoderarmos dele e construir uma cronologia partilhada, dele e nossa. Não sei o que é viver sem a figura aristocrática do maior cozinheiro de todos os tempos, as suas picardias, a sua criatividade e o quanto, no espaço de uma vida apenas, mostrou ao mundo a beleza da vocação da cozinha, ao mesmo tempo que inverteu radicalmente a escala social. Hoje é o chef a figura mais importante de um restaurante, antes de Bocuse era o protocolo de estado e a hierarquia social que ditavam a verdadeira ordem. Três estrelas Michelin ininterruptas desde 1965 é já um sinal inequívoco da excelência e liderança no mundo inteiro, mas mesmo assim, deixa receitas cósmicas e inúmeros episódios inesquecíveis no coração de todos os que directa e indirectamente com ele se cruzaram. Em todos os restaurantes estrelados há fotografias emolduradas com o grande mestre nas paredes mais nobres das salas de refeição. Justifica-se plenamente o epíteto de papa da gastronomia, jamais existiu nem existirá figura tão magnética no mundo da cozinha. Tudo o que ele foi, fez e queria fazer está disponível na net, basta googlar para ver que está em tudo e em toda a parte. Fundamental é o momento em que em 1975 o então presidente francês Valéry Giscard d’Estaing condecora o cozinheiro com a legião de honra, estatuto jamais reconhecido a um cozinheiro. Hoje a sopa de trufas VGE representa a um tempo o maior reconhecimento dado a um cozinheiro e também a primeira vez que foi chamado à sala para receber um aplauso pelo seu trabalho. Eu tive uma troca epistolar com o grande chef de Lyon há cerca de dez anos, queria então que aceitasse ser o convidado de honra de um congresso internacional de gastronomia de que eu era comissário. Para minha grande surpresa, tive resposta praticamente imediata, mostrando grande interesse e curiosidade por vir até Portugal, e até no sentido de visitar alguns restaurantes. Enquanto tratava de pormenores do seu périplo português, veio uma segunda mensagem dizendo que afinal não tinha disponibilidade e agradecia muito. Vim a saber que a mudança de humor se devia a um erro lamentável por parte da estrutura do evento, ao perguntar-lhe qual seria o seu cachet para vir ao congresso. O tipo de perguntas que não se faz a uma personalidade como Paul Bocuse. Registei, de qualquer forma, a sua afabilidade e curiosidade. Apadrinhou o movimento de jeune cuisine Omnivore, ele que foi um dos pais da nouvelle cuisine no início dos anos setenta. Sempre a abraçar o inteiramente novo com o entusiasmo de uma criança, são muitos os que lhe recordam esse aspecto de fantasia. Pouco tempo depois do congresso estive uma semana em Paris e visitei dois grandes discípulos do mestre, nos seus restaurantes, ambos confirmaram a disponibilidade interior para conhecer novos projectos e pessoas. A sua simplicidade foi sempre uma grande característica de alma. Numa dessas noites, pelas duas da manhã vejo na televisão uma entrevista feita pelo grande jornalista Jean-Luc Petitrenaud, em que Monsieur Paul, como gostava de ser chamado, defendia que a sua cozinha era muito simples. E demonstrou. Numa placa de indução pôs três litros de vinho tinto de Beaujolais que aqueceu até fervilhar, e pegou em dois ovos para escalfar no grande tacho. Enquanto falava com o jornalista, ia agitando os ovos com uma grande concha mas sem lhes tocar. A certa altura giravam a uma grande velocidade, até que os tirou, colocou num prato de sopa e deixou arrefecer, sempre conversando animadamente. Abriu-os com uma faca e estavam com a gema em fusão, provou e aprovou, para logo fazer uma cara de desapontamento, dizendo que se tinha esquecido da salsa picada. Petitrenaud, que foi outrora actor de teatro, encenou um raspanete ao grande chef pela falta, a que Paul Bocuse respondeu com uma sonora gargalhada. Típica dos simples, acessível apenas aos gigantes. Noventa um ano anos, abatido pelo mal de Parkinson, o grande chef senta-se finalmente no olimpo. Merci, Monsieur Paul.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.