segunda-feira, 21 de outubro de 2013

O silêncio fecundo

As condições de extrema tensão em que os cozinheiros trabalham neste momento fazem-me admirá-los mais que nunca. E sei que apesar da crise, todas as adversidades serão superadas. Transportam dentro um segredo inviolável, que é o seu silêncio.

Sobre o acto de escrever escreveu Agustina Bessa-Luís "Ama-se a palavra, usa-se a escrita, despertam-se as coisas do silêncio em que foram criadas", na sua "Contemplação carinhosa da angústia" (Guimarães Editores, 2000). Atrai-me a ideia da criação como coisa estritamente individual, e ainda mais a renúncia que sugere a toda e qualquer perturbação da relação entre criador e coisa criada. Escrever exige, tal como o exercício das outras artes, como que uma entrega total e duradoura. Total, porque as faculdades são integralmente canalizadas para o processo; duradoura, porque não é instantâneo, a temporada de convívio com a peça inacabada pode tardar anos, como sabemos. É preciso o amor evocado por Agustina para que a obra veja finalmente a luz do dia. A literatura, música, escultura, pintura, etc., exigem uma vida inteira de preparação, e depois uma outra de total dedicação. E quando uma obra está terminada, transfere-se a angústia para a obra seguinte, e o ciclo recomeça.
A cozinha tem muito de amor e dedicação, também. O cozinheiro culto é um ser inquieto e desinstalado, com uma força indefectível a avassaladora dentro, que desemboca na necessidade absoluta de criar. E tem uma agravante: o trabalho nunca está completo. As criações sobrepõem-se e alternadamente tiram o sono ao cozinheiro que lhes é dedicado, pedindo ajustes aqui e ali. Curiosamente, pelo que me tem sido dado a ver, é na turbulência dos dias andados - que nas cozinhas são garantidamente pouco monótonos - que surgem as primeiras luzes, mas depois é na reclusão e na quietude que o desenvolvimento se dá. No silêncio de Agustina. Pode vir daí a longa fiada de escritores que são também dados à cozinha e que desenvolveram relações de profunda cumplicidade com os cozinheiros, ao longo da história. A relação é benéfica para ambos porque os obriga a crescer; a sair da que hoje carinhosamente chamamos zona de conforto. O cozinheiro que faz o seu trabalho de forma madura procura cultivar-se e se a cultura estiver instalada na sua sala, através de pessoas intelectualmente orientadas, é inevitável que se dê o prodígio do crescimento. Depois e finalmente, o silêncio. É nesse reduto que se despertam as coisas criadas que sugere Agustina, sabendo que não há nada que seja inteiramente novo à nossa espera. Antes, fomenta-se a perplexidade perante um léxico que se domina cada vez maior. Um pouco como a partir de uma sopa de letras vislumbrar novas declinações. Cozinhar parece ser, a um tempo, inovar sem fazer nada de novo e todos os dias voltar a fazer. Coisas que talvez só um artista compreenda.
O mito da receita e da ficha técnica dilui-se no fenómeno incrível que é cozinheiros lado a lado utilizarem a mesma receita e o resultado final ser totalmente diferente. A regra vale tanto para a alta cozinha, com muitos passos intermédios e tratamentos individualizados de ingredientes, até ao mais simples prato de província. No próximo dia 13 de Dezembro, festa de Santa Luzia, há mais uma Feira de Capões e mais um concurso, com uma só receita, que é a do Capão à Freamunde e que merece conferência no local, pela espantosa diversidade que apresenta. Uma receita apenas gera um impacte enorme na restauração local e demonstra a diversidade de um produto único, o Capão de Freamunde, que tem já honras de Indicação Geográfica (IG), mas ainda não se vende depenado e embalado como os capões espanhóis que, acidentalmente, nem sequer são capões. Há que ligar para a Associação dos Criadores de Capão de Freamunde (tel. 255 870 066) ou comprar a segunda edição do Guia da Qualifica, que acaba de sair. Já agora, é impossível não reparar na diversidade acrescida que Ana Soeiro e a sua equipa alinharam para esta edição. Além dos proverbiais enchidos, há queijos, carnes, frutos, azeites doçaria e muito mais, criando a montra excelente de produtos que sabemos existir no nosso país. Parabéns pelo feito! Sem bons produtos não há bons cozinheiros e sem um código inteligível e exportável, de nada nos serve ter bons produtos. Gosto deste corpus crescente de coisas da nossa terra que vamos tendo. Significa muito trabalho, burocracia e Bruxelas, mas todos temos de agradecer o esforço. À maneira do texto do escritor, também este trabalho de amor pela terra e pelo país ganha forma.
Ganha nova forma também o colectivo de cozinheiros portugueses, com mexidas recentes. Alexandre Silva foi para o Bica do Sapato, deixando o projecto do hotel Marmóris, em Vila Viçosa, de que foi fundador. Parece que vai para lá Pedro Mendes, o cozinheiro que mudou a forma como olhamos para a bolota, dando-lhe declinações inéditas. Henrique Mouro está a chefiar a cozinha do exótico Tavares, apostado no dilectíssimo sabor português, que tem abraçado ao longo da sua carreira. João Sá tem a difícil tarefa de lhe suceder no Assinatura, mas pelo que vi está como peixe na água. Esperamos de todos estes bravos luta sem tréguas contra crises e pessimismos. E desejamo-lhes, de novo evocando Agustina, boas moções no seio dos seus silêncios.

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