quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Memória: Peixe em Lisboa

(Texto publicado na Wine em 2008)

Peixe com equipa de luxo em Lisboa


“Cidade a ponto luz bordada / Toalha à beira mar estendida / Lisboa menina e moça, amada / Cidade mulher da minha vida”, diz quem diz o poema de Ary dos Santos, eternizado no fado “Lisboa menina e moça” por Carlos do Carmo, que o tornou só seu. A toalha que Duarte Calvão, director e criador do Peixe em Lisboa, estendeu para os lisboetas e para todos os que do Páteo da Galé no Terreiro do Paço se quiseram aproximar, nunca ninguém havia estendido, elevando o peixe e o seu trabalho ao nível da excelência.


Lisboa vestiu-se de gala para receber o “Peixe em Lisboa”, um evento cujo nome trivial se percebeu esconder uma estratégia brilhante para aclamar e recentrar o peixe na excelência das mesas alfacinhas. Ao longo de nove intensos dias, peixes de mar e rio, marisco e bacalhau foram tratados, provados e discutidos de forma original e sublime, elevando à mais alta dignidade tudo o que outrora viajava a passo nas cestas que as varinas transportavam de porta em porta.

Duarte Calvão, crítico gastronómico do Diário de Notícias, destacado para o Turismo de Lisboa desde há temporada e meia, é o pai da iniciativa e, encerrados que estão os trabalhos, está de parabéns. Conseguiu uma mobilização sem par junto da elite governante. Não houve dia em que António Costa, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, não visitasse o “lounge” de luxo que a Essência do Vinho construiu no improvável espaço do Páteo da Galé. José Sócrates e muitos dos seus ministros foram, à vez e em grupo, passantes regulares. E não houve gourmet que se prezasse que não visitasse pelo menos num dia o “Peixe em Lisboa”. É que montaram na Galé embaixada algumas das mais eminentes cozinhas de Lisboa e não só; que o grande Tejo liga com outros rios e não é só de Lisboa, e o Atlântico é o mar que transforma Portugal num bairro apenas. Vítor Sobral (Terreiro do Paço, Lisboa), Joachim Koerper (Eleven, Lisboa), Hélder Chagas (Ribamar, Sesimbra), Luís Baena (Hotel Tivoli, Lisboa), Fausto Airoldi (Pragma, Lisboa), Giorgio Damasio (Lapa Palace, Lisboa), Augusto Gemelli (Gemelli, Lisboa) e Paulo Morais (QB, Oeiras) estiveram ali a cozinhar, servir e partilhar os seus sabores e saberes, em cozinhas autónomas instaladas para o efeito. Trocavam as fichas de 5 e 8 “escudos” – que havia que aquirir previamente por 5 e 8 euros - por pratos, petiscos e sobremesas que iam, ao longo dos dias, propondo nos seus cardápios. Alguns ultrapassaram os 200 pratos diários. Todos eles protagonizaram sessões de cozinha ao vivo, no auditório, com assistência sempre animada. Duarte Calvão e André Magalhães (restaurante do Clube de Jornalistas, em Lisboa) foram incansáveis na animação das demonstrações e no enriquecimento dos debates. Outros chefes compareceram também para dar conta da sua arte, cumprindo todos em conjunto e invulgar consonância um programa denso e rico. E muitos outros passaram por lá para provar os pratos, assistir às demonstrações e beber um copo de brancos e rosés que estavam em prova, sempre boas propostas para peixe e marisco. Destaque para o Periquita rose, em lançamento no evento, e para o Moscatel Roxo rose, vencedor absoluto na opinião dos passantes.

O vinho e os produtos gourmet tiveram o seu espaço nobre, constituindo um bom contraponto a grande animação do lounge central, sempre com público e música ao vivo. Houve várias provas temáticas, ensaios de harmonização de vinhos e cervejas com comida e provas de vinhos junto dos produtores presentes. Destaque ainda para a Fnac, que criou ali uma mini-livraria de vinhos, comida e cozinha, resultado de uma pequena selecção dos títulos disponíveis nas lojas.

Dois pontos altos marcaram o “Peixe em Lisboa” com a indelével marca da qualidade. Um deles foi a homenagem a Maria de Lourdes Modesto, feita numa sessão necessariamente emotiva a que assistiram muitos dos chefes, críticos e amantes da boa comida que lhe devem muito, que são todos. A mais mediática e ao mesmo tempo reservada figura gourmet da televisão de sempre em Portugal, é alguém que ainda hoje acompanha e motiva os novos chefes, sem nunca esquecer os antigos e até mesmo os que optaram por ficar na sua plataforma. O seu esforço de actualização é notável, nunca se atendo a cumprir um programa tradicional e conservador. A propósito do acto público que lhe foi dedicado, afirmou, com a humildade que se encontra apenas nos grandes: “A homenagem, de que gostei muito e agradeço do coração, creio que não foi mais do que um gesto simpático para comigo, talvez devido à minha permanência na profissão, idade e ter conseguido ser respeitada”. Em relação ao Peixe em Lisboa, “achei das iniciativas mais conseguidas em matéria de gastronomia entre nós. É de louvar, divulgar e institucionalizar”.

O outro ponto alto foi a tertúlia de topo do evento, juntando no mesmo debate José Bento dos Santos, produtor de grandes vinhos em Alenquer e autor do programa “O Sentido do Gosto” da RTP 1; David Lopes Ramos, crítico gastronómico e de vinhos do jornal Público; Manuel Gonçalves da Silva, crítico gastronómico e de vinhos da revista Visão; e Duarte Calvão, crítico gastronómico do Diário de Notícias e director do Peixe em Lisboa. O tema lançado foi “Peixes e mariscos na gastronomia portuguesa” e, sendo embora todos os intervenientes no debate muito diferentes uns dos outros na sua forma de avaliar a comida, os restaurantes e a própria culinária, o que se sentiu foi um uníssono de optimismo e reconhecimento da qualidade atingida pela restauração nacional de topo. “Todos temos de reconhecer que em Portugal estar à mesa é uma festa e mesmo os pratos mais tradicionais de peixe têm um sentido forte de celebração”, disse David Lopes Ramos. “Se olharmos para a qualidade do nosso peixe, sem dúvida entre os melhores do mundo, então ainda mais razões temos para nos sentirmos orgulhosos”, comentou Bento dos Santos. Haveria que transcrever o conteúdo de toda a tertúlia, incluindo as participações do público, sempre pertinentes e cultas, e lavrá-la em suporte de papel, pelo seu conteúdo matricial e imanente, fundamental para perceber os caminhos futuros da nossa gastronomia.


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CAIXA

O depoimento de Duarte Calvão


É comum entre os gastrónomos portugueses a discussão sobre se há clientes para a cozinha mais moderna e criativa que se faz entre nós. O Peixe em Lisboa, onde não só se apresentaram alguns dos mais conceituados chefes de cozinha da região de Lisboa, como houve, em permanência, seis restaurantes de topo, com diversos estilos culinários, veio provar que não só esse público existe como está muito receptivo a ofertas que apostem na qualidade e na inovação, apresentadas em ambientes confortáveis e divertidos. De facto, quer no auditório, onde houve uma enorme afluência de público de várias idades, quer nos restaurantes, que não tiveram mãos a medir, houve um enorme entusiasmo, que contagiou os próprios chefes, pela descoberta de novas formas de apresentar os peixes e mariscos portugueses. 

De realçar também que o principal objectivo desta primeira edição do Peixe em Lisboa, que é organizado pela Associação de Turismo de Lisboa em colaboração com a Câmara Municipal de Lisboa, de criar um evento diferenciador, que coloque a cidade no calendário dos grandes festivais gastronómicos europeus, foi alcançado, já que, além da grande repercussão entre os “media” portugueses, passaram pelo Páteo da Galé muitos turistas e vários jornalistas do Brasil, Espanha, Alemanha, Itália, França, Bélgica, Rússia e ainda de outros países de onde são oriundos muitos dos que nos visitam. Por isso, no momento em que escrevo, está quase certa a continuação do evento no próximo ano, bem como uma série de acções promocionais que visam divulgar Lisboa como um local de excelência mundial para apreciadores de peixes e mariscos.

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Aprender a escolher. António Moita, do restaurante “A Travessa” (Lisboa), logo a seguir à abertura oficial, animou uma sessão sobre escolha de peixe e como avaliar. Leonel Pereira (Sheraton Lisboa) e Joachim Koerper, indigitados para a tarde do mesmo dia, escolheram nessa sessão o peixe para os seus “show-cookings”. Especialistas de grande preparação técnica, animaram sessões sobre “cozer, grelhar, assar e fritar” o peixe, muito participadas e animadas pelo público. Era Sábado e os trabalhos estavam ainda apenas a começar, já a afluência era grande. Joachim Koerper não escondia a sua admiração pela “qualidade do público e pelo alto nível das sessões”. O mediático Chakall, entretanto, fazia demonstrações de “truques e receitas” num outro espaço, no que foi repetente em todos os dias, sempre com assistência que não arredou pé até ao derradeiro momento da prova.


Marisco, sushi e sashimi. Foi pela mão da Cervejaria Ramiro (Lisboa) e da Unicer que se abriram os trabalhos do segundo dia, Domingo. O tema foi o marisco, servido com excelência por aquela casa da Avenida Almirante Reis. Se as receitas são cândidas, passando quase sempre pela cozedura no ponto, as técnicas para arranjar os diferentes mariscos são menos conhecidas, pelo que todos os passos foram seguidos com a maior atenção. Entrou a cerveja no processo, explicando-se notas e estratégias de harmonização com o marisco. Estavam, de resto em generosa prova – gratuitas para todos -, ao longo de todo o evento as novas cervejas “gourmet”. No final da tarde, foi a vez de Paulo Morais, juntamente com três “discípulos” seus das complexas artes da cozinha japonesa, mostrar como alguns dos nossos peixes mais correntes podem ser transformados em oferta requintada, à boa maneira nipónica. Para gáudio de todos os que assistiam, peixes tão diversos como tainhas, carapaus, ruivos e cavalas foram apresentados em sashimi e sushi, com montagens de grande efeito e sabor. O seu “restaurante” no Páteo da Galé foi dos mais procurados.


O dia do fiel amigo. O mau tempo que assolou Lisboa, com chuva e vento intensos, não foi suficiente para afugentar o público gourmet que fez do Terreiro do Paço o seu centro de gravitação. Especialmente no dia em que o bacalhau foi rei. Bertílio Gomes, do Restaurante Vírgula (Lisboa), fez na sua sessão uma apresentação dos diferentes tipos de bacalhau à venda, incluindo as curas e tamanhos. Desmistificou o que é conhecido como “asa branca”, limitando-se a diferença à retirada da pele das abas, ao mesmo tempo que explicou a sua abordagem ao tradicional Bacalhau à Gomes de Sá, que executou ao vivo, enquanto estabelecia um diálogo ininterrupto e participado com a audiência. Afinal, não há quem não tenha a “sua” receita de bacalhau… Seguiu-se no auditório o mediático Vítor Sobral, do Terreiro do Paço, nas traseiras do qual fica o Páteo da Galé, onde tudo se desenrolou. Habituado a cozinhar ao vivo, executou dois pratos de bacalhau, um dos quais “dedicado” ao Brasil – estavam jornalistas de uma cadeia brasileira de televisão a fazer um trabalho em Portugal sobre o chefe português -, um bacalhau no forno com farofa de pão alentejano. Tanto Vítor Sobral como Bertílio Gomes cozinham o bacalhau a baixa temperatura, nunca permitindo que a água levante fervura. Fazendo-o, na opinião de ambos, anula a hidratação feita pela demolha de dois dias, perdendo todos os seus sucos. No rescaldo do evento, Vítor Sobral mostrou-se “muito satisfeito pelo bem que se tratou a cozinha portuguesa e o produto português”. Há que dizê-lo, foi o chefe que mais investiu na sua oferta diária de pratos, sempre com os peixes mais nobres a pontificar no seu cardápio.


Tejo, Sado e mar. Momento de grande emoção aquele que Pedro Miguel Gil, proprietário da Pensão Flora, em Vila Franca de Xira, proporcionou aos amantes dos peixes de rio e do seu receituário. O “Recanto do Ti Pedro”, assim se chama o restaurante da pensão, é um destino de culto que já leva mais de 50 anos de história. Pelo seu grande aparato, Pedro Gil preferiu gravar o processo de preparação do sável na sua cozinha de Vila Franca, tendo sido projectado o vídeo, ao mesmo tempo que ia fazendo comentários. Impressionou a intimidade com que arranjou o peixe e deu destino às diferentes partes, para o seu sável frito com açorda de sável. Impressionou ainda mais a forma directa e sem rodeios, a transpirar sabedoria, com que revelou a sua grande preocupação em relação ao futuro da sua arte e da cozinha de peixes de rio. Admite não conhecer seguidores seus, mas estamos seguros de muitos terem com ele aprendido muito. Justa Nobre, agora instalada no Montijo, de novo com uma casa à altura do seu talento, apresentou-se na sessão com a sua irmã Ana, reproduzindo o imbatível dueto que anima a cozinha do restaurante. Prefere o peixe à carne, especialmente o robalo, de que trouxe um espécime representativo e que foi transformando desde a fase inicial, inteiro, até chegar aos lombos de robalo em crosta de pão alentejano com ervas que foi ratificado por uma audiência que se revelou por vezes – demasiado - voraz. No final do evento, Justa Nobre considerou “uma honra ter sido um dos chefes convidados”, fazendo questão de dizer que “se devia tornar um evento anual”. Segundo a chefe transmontana, “ainda são raras as iniciativas que nos aproximam do público, especialmente em Lisboa, pelo que é de acarinhar a ideia de repetir”.


Conserva também é peixe. No que foi uma surpresa para todos, a sessão conjunta de Giorgio Damasio, do Lapa Palace e Augusto Gemelli, do restaurante com o seu nome, versou sobre as conservas. Trata-se de dois expoentes da cozinha italiana em Portugal, o primeiro a suceder ao grande Franco Luise no Cipriani, o restaurante do Hotel da Lapa, o segundo um dos muito poucos a oferecer uma cozinha criativa fora do mainstream, inspirada nos valores da matriz milanesa e com forte influência dos sabores portugueses. O que não os impediu de se confessarem admiradores das conservas portuguesas, tendo ambos feito a descoberta apenas alguns anos após estarem em Portugal. Utilizam-nas quase diariamente, para cozinhar para os empregados e para si próprios. Prepararam um risotto de polvo e gnocchi de atum, tudo desde a fase inicial, incluindo o amassar dos pequeninos gnocchi. A participação do público foi grande, colocando inúmeras questões acerca dos tipos de arroz para o risotto, os pontos de cozedura e até mesmo sobre possibilidades de congelação. Encerrados os trabalhos do “Peixe em Lisboa”, Giorgio Damasio dizia que “nunca tinha estado num evento gastronómico em Portugal em que tanto o público como os chefes tivessem tanto nível”. Referia-se à franqueza e nível culinário dos últimos e à atenção e interesse dos primeiros. Ele esteve em permanência no seu “mini-restaurante”, pelo que é dos que pode falar com total conhecimento de causa. Augusto Gemelli gostou da “interacção muito positiva dos chefes entre si e dos chefes com os consumidores”. Os mini-restaurantes não serviam só para vender pratos; muitos iam ter com “os italianos” para obter conselhos e opiniões.


As preciosidades. Foi assim que Duarte Calvão, director do “Peixe em Lisboa”, chamou tanto aos petiscos como aos mariscos menos comuns, alinhando para as demonstrações ao vivo dois chefes de perfis totalmente diferentes: Hélder Chagas, do Ribamar, em Sesimbra, e José Avillez, do Tavares, em Lisboa. Mostrando embora perspectivas diversas, o que ambos fizeram foi exacerbar o sabor já de si intenso de alguns produtos. Hélder Chagas vive e trabalha junto ao mar – o Ribamar fica na marginal da praia de Sesimbra, junto ao porto de abrigo -, que conhece como muito poucos. Trouxe mariscos especiais para a sua populosa demonstração – ameijolas e pés-de-burro, por exemplo –, mas sobretudo transmitiu conhecimentos fundamentais para a boa preparação e cozedura do marisco. Deu muita coisa a provar, que desapareceu rapidamente. Já José Avillez, um dos chefes portugueses mais apetrechados tecnicamente do momento optou por uma abordagem de fusão, executando e propondo por exemplo tagliatelle de algas – a que chamou “do mar” - para acompanhar percebes, ou um inesperado iogurte de ostras com lima, acompanhado de ostra em tempura e pérolas de melão, pequenas esferas de melão com textura alternativa. Em jeito de balanço de todo o evento, José Avillez viria a comentar que o tinham impressionado muito “a partilha de conhecimentos, o prazer e a diversão”, já com os olhos postos no “Peixe” do ano que vem: “Senti que foi o primeiro passo de algo muito maior que virá”.


Acompanhamentos. Azeite, vinho, batatas, pão, arroz e muitos outros estão no rol das possibilidades para acompanhar dignamente o peixe, tal a variedade de estilos e preparações em que este pode ser preparado. Animaram o dia das “Companhias do Peixe” dois grandes chefes portugueses: Fausto Airoldi, do Pragma/Casino de Lisboa e Miguel Castro e Silva do Bull & Bear, no Porto que, apesar de não ser de Lisboa, é uma referência incontornável da nossa cozinha. Fausto Airoldi não é menos central, sendo provavelmente o responsável pelos novos talentos da nossa cozinha, a quem todos nós devemos desde já a nova sede da Associação dos Cozinheiros Profissionais de Portugal, na Lapa. Apesar do nome, tem uma loja de produtos até há pouco só disponíveis para os profissionais, pode-se comer e disponibiliza cursos de cozinha para todos. Como estética, Fausto Airoldi segue a linha dos sabores tradicionais portugueses, mais que a cozinha tradicional portuguesa, da qual ele extraiu algumas técnicas – o “à Brás de …”, por exemplo, concorde-se ou não – que utiliza em proteínas alternativas. Na sua sessão de cozinha ao vivo, optou por “mar e terra”, caso do sarrabulho com robalo e da açorda líquida de berbigão com porco cozinhado a baixa temperatura; e depois por texturas alternativas de “sabores de sempre”: esmagada de caldeirada com bacalhau e arroz de legumes com carabineiros. Na sua vez, Miguel Castro e Silva mostrou a mestria com que domina a harmonização de vinhos com comida. Para um tinto – Pasmados 2006 – um prato que se diria ser “mais para peixe”, para um branco – Quinta de Camarate Seco 2006 – um prato que mais se diria ir melhor com um tinto. A comentar a conjugação esteve António Soares Franco (filho), da José Maria da Fonseca, produtora de ambos os vinhos. Para o branco, Miguel Castro e Silva cozinhou vieiras com soja e vinagre balsâmico, acompanhadas de risotto de cogumelos e trouxa de chèvre com mel. Um prato de três componentes que revelavam coisas diferentes no mesmo vinho, o que foi atestado pelo enólogo presente. Para o tinto, produziu outro trio, desta feita morcela da Beira, salada de lulas com batatas e risotto de limão. A técnica utilizada permitiu a cada componente, tal como no branco, entrar no tinto de forma diferente. Uma experiência a repetir com um grupo mais pequeno, é o desafio que aqui deixamos ao chefe Castro e Silva. Mas houve mais, que o homem do Norte trazia um robalo de mais de quatro quilos, do qual extraiu seis lombos ao vivo e depois mostrou com três acompanhamentos diferentes. De novo, surgiram as cambiantes em ambos os vinhos, todas com resultados interessantes. Findo o evento, Miguel Castro e Silva afirmava: “retive o bom ambiente que se vivia, quase de sala de estar em casa com amigos”. Considerou, falando da iniciativa dirigida por Duarte Calvão, “um modelo de sucesso, até pela elevada frequência, certamente a manter e reforçar no futuro”.


O dia da vanguarda. Não foi só por acontecer num Sábado que o auditório esteve ao rubro. Era um dos dias mais esperados, aquele que iria tratar a “cozinha molecular”. Em jeito de tertúlia, houve primeiro uma palestra de Margarida Guerreiro e Paulina Mata que mostrou o programa mínimo para perceber o que acontece, quando se passa para o nível atómico, ao mesmo tempo que insistiam no ponto de que “não há cozinha que não seja molecular”. O inefável e feminino grupo da Cooking.Lab, apresentado por Joana Moura, fez algumas demonstrações, produzindo por exemplo um spaghetti de tinta de choco e uma curiosa colagem de atum com salmão. “Apenas para demonstração”, fez questão de referir a especialista, “porque nós não somos chefes de cozinha”. Nas sessões seguintes, entraram em cena dois chefes modelares que são também grandes entertainers: Ljubomir Stanisic, do 100 Maneiras em Cascais, e Luís Baena, do Hotel Tivoli em Lisboa (e todos os hotéis Tivoli, na verdade; prometeu novidades para breve no do Algarve). Ljubomir - Lhubo, como gosta de ser chamado – alia um grande talento culinário à atracção pela novidade. Galvanizou a audiência de tal forma que se pensou que a casa vinha abaixo, sempre com aplausos vigorosos. O caso não era para menos. Como resistir a um fumado feito num copo “que roubei ao meu sommelier” – Manuel Moreira – invertido e com o pé serrado, ou a um prato de robalo que é servido sobre uma pequena grelha debaixo da qual “arde” serradura e extracto de pinheiro? Ou a um prato de vieiras em que estas são apresentadas na forma de tagliatelle, ao lado das convencionais? Todos pratos que estão no prelo da nova carta do 100 Maneiras. Luís Baena apresentou-se com uma panóplia de propostas que siderou a audiência. Fez dos “fish fingers” um prato traduzido à letra. À frente de todos, fez um molde… do seu próprio dedo, com a massa que se utiliza para fazer próteses dentárias! Encheu o molde com uma pasta de robalo ligada com transglutaminase – a mesma que se utiliza no fiambre – e o resultado foi realmente um prato em que os dedos do chefe são dados a comer. Houve ainda uma cavala fumada numa caixa de vinho de cartão, com “chips” a arder por baixo, e dois caviares, um de tinta de choco, outro de açafrão. Esferificação? Não. Com alguma ironia, Luís Baena simplesmente cozeu tapioca e, quase no final da cozedura aromatizou e “coloriu” as pequeninas esferas com os molhos produzidos. Um contraponto bem disposto ao uso e abuso das esferificações que se vê actualmente. Em balanço, Lhubo estava “muito impressionado com a qualidade do público e com a ambiente fabuloso conseguido no Peixe em Lisboa”, esperando que “no próximo ano se repita a iniciativa”. Luís Baena afirmou: “Gostei imenso do ver o abandono propositado e consciente da imagem das barraquinhas e dos pratos de barro que, em nome de um falso tipicismo, continuam a ditar o que é ou não genuíno”, louvando Duarte Calvão pelo seu arrojo e pela sua capacidade de organização. Fez ainda questão de frisar que “a sorte protege os audazes e toda a equipa da Essência do Vinho que esteve envolvida nesta produção teve, além da dita sorte, uma enorme capacidade de materializar a experiência já demonstrada em ocasiões anteriores”.


Grande caldeirada. Para o Domingo de encerramento dos trabalhos do Peixe em Lisboa estava marcado encontro com todos os chefes presentes para cozinhar uma caldeirada de grande formato. Antes disso, Henrique Sá Pessoa, do restaurante Panorama do Sheraton Lisboa fez a sua demonstração, com sala cheia, não fora um dos mais mediáticos chefes da actualidade. Repetia-se, aqui e ali, “depois arrumo isto”, uma das suas frases liminares no “Entre Pratos”, o programa de televisão que a comunidade gourmet e não só acompanha semanalmente. A sua sessão foi fortemente baseada na tradição, apresentado os sabores em novas formas e companhias. Fez uma caldeirada com peixes nobres, cozida a baixas temperaturas, mostrando como a cozedura prolongada na versão tradicional pode ser prejudicial para o peixe, quando este é fino e delicado. Logo a seguir, no lobby principal, Giorgio Damasio, Hélder Chagas, Paulo Morais, Vítor Sobral, Augusto Gemelli, Fausto Airoldi, Leonel Pereira, Luís Baena e Henrique Sá Pessoa, fizeram uma “caldeirada de autor”, um verdadeiro elenco de luxo que produziu um prato que ninguém se escusou a provar. Domingos Soares Franco, enólogo da José Maria da Fonseca, abriu garrafas de grande formato de Periquita, o ex libris da casa.