Notas soltas para harmonização de vinhos e música.
Há pontes evidentes entre música e vinho e todas elas decorrem da característica intrinsecamente vibratória da música. Os aspectos harmónicos e inarmónicos da vibração ocorrem também dentro do vinho. Qualquer líquido ou sólido a transportam de forma imanente e única. A própria molécula elementar tem uma vibração latente entre os seus átomos que definem tanto o seu estado energético como o comportamento numa reacção química. Por outro lado, o estímulo da vibração induz nos líquidos alterações que são objecto de estudo e caracterização. O vinho é particularmente sensível ao estímulo vibratório. Uma cave de vinhos na qual queremos estagiar e manter os nossos vinhos por muitos e bons anos deve, por isso mesmo, ser imune à vibração e sobretudo não ter, ela própria, um ambiente demasiado vibratório. Os armários climatizados para vinhos que hoje se vendem e aos quais confiamos as nossas mais preciosas garrafas, garantem não só temperatura e humidade constantes, mas também ausência de vibração. Isto faz com que os vinhos evoluam tranquilamente, de acordo com os seus componentes e perfil, em vez de por estímulos exteriores.
Vinho é complexidade. Aromas, sabores, sensações, entrada de boca, meio de boca, fim de boca, retronasais, bouquet, são inúmeras as portas de entrada de um bom vinho. Podem, por isso, ser eles próprios estados de alma. E como sabemos que é verdade que um mesmo vinho há dias que nos apetece, contra outros em que não nos apetece nada. Um pouco como as relações entre as pessoas, que conhecem melhores e piores dias consoante os ânimos e os astros, apesar de as pessoas serem as mesmas (serão?...)
Eu tenho particular dificuldade em não pensar em que vinho me evoca a voz de alguém que acabo de conhecer. Reconheço no timbre, intensidade, aresta, rugosidade e flutuações da voz características que são quase directamente transponíveis, sem mais, para o ambiente conjunto de taninos e acidez de um vinho. Uma voz esganiçada é um vinho com taninos muito verdes sobre os quais cai uma acidez desequilibrada. Já uma voz de peito e doce, como é a voz de uma mãe, evoca taninos muito finos, com uma acidez escondida, quase imperceptível. A voz do pai, essa é normalmente “feita” de taninos redondos, maduros, suportando uma acidez maior, pelo ambiente também ele maior.
Os estudos musicais para que os meus pais me conduziram na infância e na juventude foram causa de dor e sofrimento, ligados ao sentimento geral de “não ser capaz” que só não experimentou quem nunca se dedicou a um instrumento. Passados alguns anos deram contudo numa fonte de grande prazer, partilhado com outros. A minha relação com o piano é bonita e cabe nela praticamente todo o meu mundo. Toco mal, mas tenho um gozo tremendo a tocar, e aproveito para pôr a conversa em dia com pessoas que não tenho mais ao pé de mim. Os cerca de 10 anos que dediquei ao órgão de tubos de S. Domingos, por motivos imprevistos e que ainda hoje não sei explicar, que não seja pela insistência de um grande amigo dominicano, Frei José João, ensinaram-me ainda mais um mundo todo. A função dos metais, do sopro e dos grandes bordões graves do que é talvez o instrumento musical mais poderoso de todos.
Mas mais importante não é tocar, é saber ouvir. Aprender a ouvir, percebendo o que está a acontecer à nossa volta. A música aprende-se. O vinho é exactamente a mesma coisa, também se aprende a apreciar. Música e vinho são ambos assunto de aperfeiçoamento para uma vida inteira. E não há melhor forma de o fazer do que praticando.
(Exercício feito a convite da Bacalhôa Vinhos no dia 11 de Outubro de 2012)
I Aliança Bairrada Bruto 2007
1. Canadian Brass - Tuba Tiger Rag
2. Dukes of Dixieland - Bourbon Street Parade
3. The Dirty Dozen Brass Brand - Carvan
II Casal Mendes Rosé
4. Nitin Sawney - Say Hello
5. Bliss - Song for Olabi
III Casal Mendes Verde
6. Carlos Paredes - Verdes Anos
7. Gotan Project - Queremos Paz
IV Quinta do Carmo Branco 2011
8. Dionne Warwick - I'll never fall in love again
9. Emmy Curl - Elefante
10. Nitin Sawney - Immigrant
V Quinta do Carmo tinto 2008
11. Nitin Sawney - Tides
12. Miles Davis - A kind of blue
VI Moscatel de Setúbal 2000
13. Terez Montcalm - Shattered
14. Ana Carolina & Seu Jorge - É isso aí
15. João Gilberto - Hobalala
A chave
I. Espumante: FESTA, Metais, Marcha, Fanfarra;
II. Verde Rosé: PROXIMIDADE, Lounge, Whispering, Vocalizos;
III. Verde Branco: SAUDADE, Guitarra portuguesa, acordeão, batida em aceleração;
IV. Branco alentejano: SEDUÇÃO, voz de taninos firmes, frescura e recorte, projectiva;
V. Tinto alentejano: CONFORTO, A voz do pai, cordas quentes, piano, violino, violoncelo, sopros;
VI. Moscatel de Setúbal: INTENSIDADE, Força, doçura, persistência.
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